A pandemia que dá lucro
Viver sem trabalhar, sem nada produzir, não é uma fatalidade forçada só nestes tempos. Antes da pandemia, sobretudo em alturas de algo que se convencionou serem ‘vacas gordas’, esse modo de vida já era explorado por muito boa gente. Pior, era intencionalmente incentivado por quem indicava o caminho para acumular este subsídio com aquele apoio, mais este saco de compras com aquelas telhas. Tudo a troco de um mísero voto, mesmo sem a certeza que a cruzinha fosse feita no quadrado pretendido.
Este parasitismo fomenta duas grandes injustiças sociais: o desvio das ajudas de quem efetivamente precisa delas e a sensação falsa que os recursos públicos são infindáveis. Mostra também outras fragilidades mais concretas, como a má gestão, a falta de controlo da coisa pública, a incompetência de quem tem de cumprir com os seus deveres.
Esta semana, o JM trouxe à estampa a realidade adaptada à pandemia que vivemos. Os tempos são outros, há efetivamente pessoas que precisam (mais do que nunca) de serem ajudadas, quer porque nunca fizeram do parasitismo o seu modo de vida, quer porque essa ajuda pode ajudá-las a retomarem a normalidade.
O que podíamos e devíamos dispensar era esta correria de organismos e instituições a ver quem dá mais, com a política como pano de fundo. Se noutros tempos a solidariedade e os maus hábitos tinham uma cor predominante, hoje vemos disputas de várias tonalidades partidárias. Muito recentemente, discutiram-se fundos de emergência e quem teve direito a gerir parte desse bolo; houve quem barafustasse, mas apenas porque também queria ‘molhar a sopa’.
É impensável, nos tempos que correm, que instituições públicas não consigam cruzar dados para perceberem a verdadeira aplicação dos recursos que gerem. Existem os condicionalismos da preservação da privacidade, é certo, da mesma forma que existem deveres e não apenas direitos. A menos que gostem de ser enganadas, essas generosas instituições têm a obrigação de não fomentar o assistencialismo e clientelas de vária ordem. Não é prioritário, mas essas instituições devem também procurar respeitar os contribuintes que as financiam – aqueles que não só conseguem prescindir desse apoio, mas que ainda são os contribuintes líquidos da ‘festarola’. Contribuintes que não podem ser confrontados, no dia a dia, com evidências de que é mais confortável ficar de esplanada do que meter mãos à obra, seja lá no que for.
Pode ser chocante chegar à conclusão que a pandemia, nalguns casos de sobreposição de ajudas, até pode dar a sensação de lucro. Sensação igualmente estapafúrdia parecem já ter experimentado alguns encarregados de educação, no caso dos manuais escolares, quando se aperceberam que o mesmo livro estaria a ser disponibilizado por mais do que uma entidade… Realidades incríveis, mas que precisam de ser olhadas e avaliadas de forma bem mais responsável, o que não significa que os centros de decisão possam, a partir de agora, fazer pagar o justo pelo pecador. Não, o pecado é facilitar a sobreposição de apoios, sem rigor, sem controlo. E normalmente por causa do tal voto miserável.
Igualmente para refletir, no improvável cenário em que a pandemia dará lucro, alguns setores da nossa sociedade poderão não estar a retribuir minimamente a solidariedade que receberam. Particularmente na nossa Região Autónoma, em que uma parte significativa da larguíssima Função Pública foi impedida de trabalhar, sem qualquer corte salarial. Se deu lucro, bom proveito lhes faça. Na lenta reabertura do comércio e da restauração, por que não contribuírem – saindo de casa, comprando algo que necessitem, almoçando ou jantando fora onde quiserem – para ajudar a sairmos disto?
Mais um exemplo: toda a classe política, incluindo a madeirense, está a passar incólume entre os pingos da pandemia, com redução de trabalho, de afazeres, de responsabilidades. Menos redução remuneratória e do período de férias. Mas não os vemos por aí a fomentar a pequena e média economia local…
Na Horários do Funchal, outro exemplo de quem julga estar noutro mundo: sem passageiros, as receitas baixaram drasticamente, mas há quem ainda agite com greves e ande à procura de acréscimos remuneratórios acima dos 20%.
Valha-nos Deus!