Discutir eutanásia no meio da pandemia “é uma falta de pudor”
Numa altura em que há campanhas contra o racismo e contra o idadismo, o teólogo Anselmo Borges pergunta: afinal todos valem? Contra a eutanásia, o autor de vários livros religiosos defende que devemos continuar numa cultura da vida e não avançar para a da
“Depois de tantos esforços, no meio da pandemia, para salvar a vida das pessoas, é uma contradição querer voltar tão rapidamente ao tema como se fosse prioritário”, reage, assim, ao JM, o teólogo Anselmo Borges quando instado a comentar a consideração feita recentemente pela Conferência Episcopal Portuguesa que defende que um referendo sobre a eutanásia seria uma oportunidade para a sociedade pensar sobre o assunto. Instado a comentar esta questão o autor de ‘Conversas com Anselmo Borges’ afirma que é mesmo uma contradição e uma falta de pudor.
“Devemos continuar numa cultura da vida e não avançar para uma cultura da morte”, defende o teólogo, autor de várias publicações sobre religião. No entender do teólogo, uma legislação a conceder o direito de pedir a eutanásia, coloca o Estado contra a sua própria essência, que é a defesa da vida. Nessa situação, o Estado fica com mais um dever: dar a morte, pois é disso que se trata a eutanásia”, afirma, para logo adiantar que, mesmo a pedido, “a eutanásia é matar”. Por outro lado, não se pode esquecer que, nas presentes circunstâncias, dada inclusivamente a gravíssima crise económica e social, que tenderá a ase agravar, uma lei da eutanásia, não só levará a relaxar o esforço gigantesco que se tem feito para salvar vidas, como muitos a interiorizar o de ver de pedir a eutanásia.
Recordando que há agora grandes campanhas mundiais contra o racismo, como Black Lives Matter, contra o idadismo (discriminação dos velhos), Anselmo Borges aproveita para, ao Jornal, deixar uma questão para reflexão: “afinal, não
Anselmo Borges.
valem? Não são importantes as vidas de todos?”. Assim, prossegue, “all lives matter”. Aproveitando a ocasião, o teólogo diz que gostava de saber dos quase dois mil doentes que morreram com covid-19, quantos pediram para serem eutanasiados ou falaram disso com os médicos.
“Sim. All lives matter”, reforça. Assim, o escritor aproveita para questionar a legitimidade do Parlamento se os dois maiores partidos não incluíram a eutanásia nas campanhas eleitorais. “Poderá ter legitimidade legal, mas não tem legitimidade ética, moral”, afiança. O padre da Sociedade Missionária Portuguesa sublinha ao JM que seria uma vergonha se, num regime democrático, a Assembleia da República ousasse ignorar o pedido de referendo sobre a questão com 95.287 assinaturas. “Tratando-se de uma mudança civilizacional quanto à vida e quanto à morte, que o povo se pronuncie, com conhecimento de causa”, refere. Para Anselmo Borges, eutanásia e morte medicamente assistida são coisas diferentes. Por vezes, “falaciosamente, identifica-se os dois conceitos. Uma coisa é a eutanásia: supõe-se ativa, com a intenção de matar uma pessoa, pôr fim à vida de alguém. Outra coisa é a morta medicamente assistida”, explica. O teólogo acrescenta que apesar de ser contra a eutanásia, quer e pede, portanto, morte medicamente assistida também afetivamente, emocionalmente, pastoralmente, religiosamente. Mas, conforme realça, em Portugal, não há cuidados paliativos para todos. Assim, no seu entender, é também decisivo explicitar que o ser contra a eutanásia não significa, de modo algum, ser a favor da obsessão ou do encarniçamento terapêutico.
“Permita que lhe confesse que há pouco tempo, fui levar um irmão meu ao hospital, já em fim de vida, por causa de um cancro. A médica observou-o e disse-me: sabe, a situação não sabe? Respondi: sei perfeitamente. Só lhe peço, doutora, dois favores. Primeiro, não o deixem sofrer, aliviem-lhe o sofrimento na medida do possível. Segundo, não lhe prolonguem a vida indevida e inutilmente, com meios exagerados. Deixem-no morrer em paz. E assim foi”, conclui.