Jornal Madeira

Discutir eutanásia no meio da pandemia “é uma falta de pudor”

Numa altura em que há campanhas contra o racismo e contra o idadismo, o teólogo Anselmo Borges pergunta: afinal todos valem? Contra a eutanásia, o autor de vários livros religiosos defende que devemos continuar numa cultura da vida e não avançar para a da

- Por Carla Ribeiro carlaribei­ro@jm-madeira.pt

“Depois de tantos esforços, no meio da pandemia, para salvar a vida das pessoas, é uma contradiçã­o querer voltar tão rapidament­e ao tema como se fosse prioritári­o”, reage, assim, ao JM, o teólogo Anselmo Borges quando instado a comentar a consideraç­ão feita recentemen­te pela Conferênci­a Episcopal Portuguesa que defende que um referendo sobre a eutanásia seria uma oportunida­de para a sociedade pensar sobre o assunto. Instado a comentar esta questão o autor de ‘Conversas com Anselmo Borges’ afirma que é mesmo uma contradiçã­o e uma falta de pudor.

“Devemos continuar numa cultura da vida e não avançar para uma cultura da morte”, defende o teólogo, autor de várias publicaçõe­s sobre religião. No entender do teólogo, uma legislação a conceder o direito de pedir a eutanásia, coloca o Estado contra a sua própria essência, que é a defesa da vida. Nessa situação, o Estado fica com mais um dever: dar a morte, pois é disso que se trata a eutanásia”, afirma, para logo adiantar que, mesmo a pedido, “a eutanásia é matar”. Por outro lado, não se pode esquecer que, nas presentes circunstân­cias, dada inclusivam­ente a gravíssima crise económica e social, que tenderá a ase agravar, uma lei da eutanásia, não só levará a relaxar o esforço gigantesco que se tem feito para salvar vidas, como muitos a interioriz­ar o de ver de pedir a eutanásia.

Recordando que há agora grandes campanhas mundiais contra o racismo, como Black Lives Matter, contra o idadismo (discrimina­ção dos velhos), Anselmo Borges aproveita para, ao Jornal, deixar uma questão para reflexão: “afinal, não

Anselmo Borges.

valem? Não são importante­s as vidas de todos?”. Assim, prossegue, “all lives matter”. Aproveitan­do a ocasião, o teólogo diz que gostava de saber dos quase dois mil doentes que morreram com covid-19, quantos pediram para serem eutanasiad­os ou falaram disso com os médicos.

“Sim. All lives matter”, reforça. Assim, o escritor aproveita para questionar a legitimida­de do Parlamento se os dois maiores partidos não incluíram a eutanásia nas campanhas eleitorais. “Poderá ter legitimida­de legal, mas não tem legitimida­de ética, moral”, afiança. O padre da Sociedade Missionári­a Portuguesa sublinha ao JM que seria uma vergonha se, num regime democrátic­o, a Assembleia da República ousasse ignorar o pedido de referendo sobre a questão com 95.287 assinatura­s. “Tratando-se de uma mudança civilizaci­onal quanto à vida e quanto à morte, que o povo se pronuncie, com conhecimen­to de causa”, refere. Para Anselmo Borges, eutanásia e morte medicament­e assistida são coisas diferentes. Por vezes, “falaciosam­ente, identifica-se os dois conceitos. Uma coisa é a eutanásia: supõe-se ativa, com a intenção de matar uma pessoa, pôr fim à vida de alguém. Outra coisa é a morta medicament­e assistida”, explica. O teólogo acrescenta que apesar de ser contra a eutanásia, quer e pede, portanto, morte medicament­e assistida também afetivamen­te, emocionalm­ente, pastoralme­nte, religiosam­ente. Mas, conforme realça, em Portugal, não há cuidados paliativos para todos. Assim, no seu entender, é também decisivo explicitar que o ser contra a eutanásia não significa, de modo algum, ser a favor da obsessão ou do encarniçam­ento terapêutic­o.

“Permita que lhe confesse que há pouco tempo, fui levar um irmão meu ao hospital, já em fim de vida, por causa de um cancro. A médica observou-o e disse-me: sabe, a situação não sabe? Respondi: sei perfeitame­nte. Só lhe peço, doutora, dois favores. Primeiro, não o deixem sofrer, aliviem-lhe o sofrimento na medida do possível. Segundo, não lhe prolonguem a vida indevida e inutilment­e, com meios exagerados. Deixem-no morrer em paz. E assim foi”, conclui.

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