Jornal Madeira

A casa imaginada

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Acasa é uma outra. É um lugar distante em silêncio e no escuro. Já não há na casa os passos e a respiração que a habitavam. Já não há ninguém à mesa a sorrir. Já não se entra pela parte dos livros, que estão ausentes. Aos poucos, a casa desabita-se dela mesma.

Mas casas não são apenas a existência física e concreta de uma materialid­ade arquitetón­ica. Para uma casa deixar de existir, é preciso mais do que a fazer desaparece­r no espaço. É preciso, antes de mais, fazê-la desaparece­r da memória e da pele. Os suficiente­mente lúcidos sabem que este segundo movimento de apagar é muito mais difícil. A inscrição que tem por suporte uma vontade resiste aos elementos. É mais resistente do que uma realidade concreta de materiais sólidos e capazes de abrigar do rigor das estações, do rigor do tempo, do rigor da idade.

A estação que trazemos por dentro faz-se mais concreta do que todas as outras que se desenham por fora.

Por dentro, a casa ainda está integralme­nte e orgulhosam­ente cheia. Cheia de presença, cheia de planos de futuro, cheia da felicidade possível, cheia de uma vida imaginada que é o projeto mais concreto de uma casa.

A casa é ainda outra, porque é possível regressar a ela em diversos momentos do dia. Abrir as janelas, deixar entrar a luz, deixar que a chuva se atire contra as janelas e o chão. Contra o verde do fundo da sala.

Deixar que anoiteça e ficar por dentro da casa como um regresso a um início de um jogo que cria as suas próprias regras.

Ainda subo a escadas ao teu ritmo para te ver sorrir da felicidade de habitarmos a casa, o quarto, a cama, a luz difusa e depois o escuro de nos sabermos a salvo, mesmo que não o estivéssem­os nunca.

A casa é ainda outra e não a que rodeia o movimento do corpo depois do fim. O fim é apenas uma parte da paragem, o resto pode seguir a coreografi­a do que foi sonhado. E essa coreografi­a pode ser esta dança que me desloca sempre para a possibilid­ade e não para a realidade de agora.

Somos, como as casas, produtos de um movimento imaginado, mais do que de uma realidade concreta. A casa imaginada é, por isso, mais habitável do que esta coisa real de ocupar o lugar possível.

A casa é ainda outra. Ainda dou a volta a outra chave. Ainda entro descalça no chão de madeira. Ainda olhas os meus pés descalços e atiras contra a minha rebeldia a tua ternura.

Ainda se vê o teu desenho na janela com os livros e a desordem a adiar o dia em que tudo ficaria no lugar. Ainda sou eu que assomo à porta para ver o teu sorriso vivo entre as coisas vivas.

Ainda há um gato a passar pela janela, e os pássaros que deviam ter-te levantado quando tu já só tinhas a vontade, mas não o movimento.

Ainda há o amanhecer de respirar por ti, de abrir-te a boca contra o fim.

Ainda há tanto que a casa pode implodir e explodir que ficará sempre viva no desenho de nós a chegar. A chegar infinitame­nte como um movimento preso no tempo de uma esperança.

A casa é ainda outra. Ainda dou a volta a outra chave. Ainda entro descalça no chão de madeira. Ainda olhas os meus pés descalços e atiras contra a minha rebeldia a tua ternura.

Raquel Gonçalves escreve à segunda-feira, todas as semanas

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