Neste ofício de ser gente
Otempo passa e nós aprendemos a força da nossa fragilidade. Vamo-nos adaptando àquilo que nos vai sendo possível fazer: se já não podemos correr, caminhamos; se já não podemos viajar, ficamos e encantamo-nos com o que temos (e temos tanto!).
Somos eternos aprendizes de nós. Nem sempre temos a consciência da nossa capacidade de ser diferentes. Este foi o ano da prova: o que nos salvava, pode matar-nos – os abraços, por exemplo; o que nos animava pode trazer-nos problemas; o sorriso tem de ser desenhado no olhar, porque a boca está tapada pela máscara que começou a fazer parte do conjunto dos nossos adereços.
Neste ofício de ser gente, cada dia é uma lição. Se a aprendemos?
Quem somos afinal? De que matéria é feita a nossa vida? Arrastamos sofrimentos inúteis, presos à pior invenção da humanidade – o medo. Vamos completando etapas, queimando o brilho que tínhamos quando éramos livres, subindo degraus de uma pirâmide que, às vezes, tem um fundo falso. E perdemo-nos do que vai ficar quando tudo o resto se for embora. Porque vai. Para todos.
Quando nos encostamos no ombro das casas e nos deixamos ficar connosco próprios, sentimos que a pele da nossa alma tem algumas cicatrizes. A imagem que o espelho nos devolve, quando retiramos a maquilhagem, nem sempre é aquela que gostaríamos de ter. Passamos o dia de ramo em ramo, numa ânsia louca de cumprir objetivos, gastando as nossas forças em mostrar o que (muitas vezes, não) somos. Quando nos damos conta, já percorremos mais de metade da vida e ainda não nos encontrámos. Talvez seja esta a hora de rezar a vida. Estamos cheios de palavras, de críticas, de dedos apontados para a fraqueza dos outros e não temos tempo para nos pensarmos aprendizes de nós, vivendo os agoras da vida, com toda a intensidade, com o riso e com a lágrima, com o sol e com a chuva, com os outros e connosco.
Seremos sempre aprendizes deste ofício de ser gente. No fim, quando fecharmos as portas das nossas casas, talvez deixemos mais do que o rasto do que fizemos, mais do que palavras, mais do que aquilo que conseguimos. Talvez deixemos o lume que alimentou a nossa procura. Pode ser que ele ajude a sustentar os aprendizes que vierem depois de nós.
Quem somos afinal? De que matéria é feita a nossa vida? Arrastamos sofrimentos inúteis, presos à pior invenção da humanidade – o medo.
Graça Alves escreve à quarta-feira, de 2 em 2 semanas