Jornal Madeira

E tu morres sozinho…

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Arealidade, enquanto tempo e espaço, é igual para todos, mas cada um cria a sua ficção para lidar com ela e assim nasce a explicação da existência: uma história ininterrup­ta de amor e horror. O resto é silêncio e o silêncio dura para sempre, cala o ruído do mundo, apaga a verdade, e tu morres sozinho..

O senhor Caires leu isto num livro e depois colocou-o em cima da mesa. Suspirou e ocorreu-lhe um pensamento importante. No entanto, o pensamento passou tão rápido e veloz que mais parecia uma estrela cadente no céu da sua cabeça. Não lhe apanhou sequer a última cintilação. Mas era um pensamento importante, lá isso era. Ou não seria? O senhor Caires ficou, então, com a ideia de que talvez aquilo que se formara no seu cérebro tivesse sido apenas o reflexo de algum movimento subtil ou impercetív­el dentro do restaurant­e e não propriamen­te um pensamento.

Chegado a esta conclusão, levantou-se e foi à casa de banho.

A casa de banho ficava na cave e era preciso descer por uma escadaria abismal ao lado do balcão. Lá em baixo ficava também o armazém do restaurant­e. O espaço estava sempre mergulhado em escuridão, mas o senhor Caires conhecia de cor e salteado a posição dos interrupto­res. Desta vez, porém, a luz não acendeu.

A lâmpada deve estar queimada, pensou, enquanto orientava os passos por instinto na direção da casa de banho.

Uma vez lá dentro, o problema da falta de luz não se colocava, pois havia uma pequena janela gradeada que dava para a rua. A janela ficava ao nível do pavimento e funcionava como um canal de televisão especializ­ado em mostrar pés, sapatos, meias, tornozelos, pernas e bainhas da roupa de transeunte­s anónimos. Por vezes, o senhor Caires achava o programa divertido. Outras vezes, deprimente.

Foi o que aconteceu nesta ida à casa de banho.

Observando o movimento da rua, enquanto urinava, o senhor Caires achou-se resumido à mais absoluta insignific­ância e começou a pensar que estava a ser enterrado vivo. Depois, sobreveio o abismo do fim do mar. As paredes à sua volta transforma­ram-se em vertentes de água e o medo tomou-lhe conta do espírito.

Vou morrer afogado, pensou o senhor Caires.

E apressou-se a sair dali.

Deixou a porta da casa de banho aberta, para que a luz da rua clareasse a cave, mas de repente viu um vulto à sua frente, uma sombra que atravessou as paredes do corredor, e ficou deveras impression­ado, como num filme de terror. Entretanto, uma corrente de ar fechou a porta com grande estrondo. O senhor Caires estremeceu e o seu coração começou a bater com muita força. Os músculos paralisara­m e ele ficou imóvel no meio do corredor, no meio da escuridão. Terá ficado assim quanto tempo? Não se sabe.

O certo é que, às tantas, a luz acendeu-se e mostrou diante de si um homem de barba grisalha e cabelo amarrado no topo da cabeça. Dirigia-se para a casa de banho. Tinha óculos redondos e olhos escuros. Era magro e alto, talvez do tamanho da eternidade. Quando se cruzou com o senhor Caires, deu-lhe um encontrão de propósito, com agressivid­ade, como se o quisesse provocar ou desafiar ou intimidar.

O empurrão fez o senhor Caires voltar à Terra.

– Desculpa – disse o homem. – Nada por isso – respondeu o senhor Caires e sentiu que falava com o Diabo.

De regresso à sua mesa, achou-se vazio e perplexo. Estava lívido e tremia um pouco. Depois, porém, pegou no livro e embrenhou-se novamente na leitura da realidade enquanto história ininterrup­ta de amor e horror.

O resto é silêncio e o silêncio dura para sempre, cala o ruído do mundo, apaga a verdade, e tu morres sozinho… tu morres sozinho…

Duarte Caires escreve à sexta-feira, todas as semanas

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