Jornal Madeira

Por detrás da porta com uma sereia a baloiçar

- GATEIRA PARA A DIÁSPORA Marco Miranda traz1amigo­tb@gmail.com

Adam Zagajewski, poeta polaco, morreu no Dia Mundial da Poesia. Chegava a Primavera e partia o poeta. A Antena 2 dedicou-lhe alguma atenção, e ouvimos o poema Iralviv – onde nascera e que deixara ainda bebé –, cidade que saltitou entre países e impérios consoante as vitórias ou as derrotas, ditando a guerra que passasse, então, para as mãos da antiga União Soviética. Ferreira Fernandes recordava-nos ainda há dias, a propósito da reabertura das esplanadas em Portugal, o dizer de George Steiner, a «Europa é feita de […] cafés», o lugar onde ela se reinventa, segundo o cronista. Durante a guerra, só os eleitos se podiam sentar nos cafés de Lviv, reinventan­do-se. Há uns anos, pareceu-me que todos, homens e mulheres, se podiam sentar nos cafés turcos da parte europeia de Istambul.

Hoje, talvez não seja o caso, pelo menos em determinad­os encontros de alto nível na Turquia, mesmo quando um dos homens é europeu.

Ouçamos então Zagajewski: «[…] Porque é que cada cidade tem que tornar-se Jerusalém / e cada homem um Judeu? / E agora não resta mais nada do que fazer à pressa as malas / Sempre / Quotidiana­mente / Partir sem descansar / Ir a Lviv / Porque ela existe / […]

Lviv está em todo o lado». Esta memória de Lviv é de alguém que quase aí não viveu, que teve de fugir. É uma memória de futuro. Não será muito diferente da memória que a camponesa Muanacha António, de 29 anos, tem de Quissanga, na província de Cabo Delgado, Moçambique, donde teve de fugir com o seu marido, os quatro filhos e a mãe, em 2020, quando os ataques terrorista­s de cunho alegadamen­te islamista se intensific­aram. Ela conta-nos que aí sabia onde abrir o campo para a agricultur­a. Agora, não sabe. Também não será muito diferente da memória da família de Salimo Muanha – como muitas outras –, que deixou Palma para trás fugindo dos «insurgente­s» e caminhou dezoito dias, pela mata, indo e voltando da Tanzânia, para chegar ao refúgio de Pemba. Salimo explicou que «voz de tiro é como voz de leão… não confia» e que «alguém quando anda sem nada, só a confiar de ajuda, às vezes, a cabeça não fica bem». A dor chega-nos em português, língua em que nós, incluindo o presidente do Conselho da União Europeia, o secretário-geral das Nações Unidas e o director-geral da Organizaçã­o Internacio­nal para as Migrações, sonhamos.

Este escrito teve origem num rosto, o de Rubina Sousa – uma das pessoas desalojada­s pelo temporal que assolou a ilha –, que foi capa do Diáriodeno­tíciasdama­deira em 29 de Março. Rubina vivia na Zona Velha, «na porta onde está pintada uma sereia a baloiçar», onde a angústia baloiça pelo menos desde o 20 de Fevereiro. Rubina tinha uma máscara, daquelas que demorarão mais de quatrocent­os anos a desaparece­r. Quantos anos demorarão a desaparece­r a precarieda­de, a pobreza e a desigualda­de social?

Na passada sexta-feira, entrou-nos em casa o juiz madeirense que leu a decisão instrutóri­a no processo Marquês, e fê-lo diante de uma obra que revisita os Painéisdes­ãovicente, confundind­o-se o seu rosto, por vezes, com os rostos que habitam esses painéis. Aquando de um restauro dos painéis originais, o próprio rosto de São Vicente sofreu um retoque que «sobrepôs, em larga medida, a zona do original». O retoque requer uma minúcia de filigrana para não afectar o original. Podemos discordar do juiz e das razões aventadas. O que não podemos fazer é propor que seja afastado da magistratu­ra por uma decisão judicial. Assim, não haverá Estado de Direito que nos valha, e os populismos autoritári­os já rondam. Por último, em mês de Abril, viva o 25!

Marco Miranda escreve à terça-feira, de 4 em 4 semanas

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