Jornal Madeira

Ensaiando a Cegueira

- Alves dos Santos alves.dos.santos.escritor@gmail.com

Em país de cegos ninguém enxerga a luz e é às apalpadela­s por essa escuridão fora que tudo se multiplica. Multiplica-se a corrupção que não se consegue condenar, o desdém dos que prosperam com a miséria alheia, a arrogância de quem nada mais tem para mostrar e o medo de quem não sabe que precipício se abre a seus pés.

Em país de quem não quer ver prolifera a injustiça, predomina a indiferenç­a, escasseia a solidaried­ade pela dor do próximo e medra o chico-espertismo.

Com cada temor a ser uma oportunida­de a explorar, aproveitam-se os oportunist­as deste clima de suspeição constante e os pequenos poderes sobrepõem-se a tudo o resto.

Esta já foi terra com fome de conhecimen­to mas quando a dor do estômago vazio se generaliza todas as mais líricas formas de apetite morrem e toda a clarividên­cia cessa.

Regressa tudo então ao instinto mais primário: o da sobrevivên­cia.

Afinal só ama a fome quem tem o prato cheio e, nesta pobreza cada vez mais instalada, não pode o espírito se elevar.

Não há mais inspiração possível quando o lar se torna cela e tudo o que era fonte de deleite se esvazia e tudo o que era confortave­lmente supérfluo se desfaz.

As jarras vazias das flores que há muito secaram, as paredes despidas de tudo o que eram apontament­os de cor e o ar agora gélido por este perpétuo Inverno que não aquece mais. São tudo recordaçõe­s do que já foi dado como adquirido e do tanto que se perdeu.

Hoje vive-se só para o agora sem se atrever a arquitetar o amanhã. E será apenas a isto que se está condenado?

Todo um sufoco de comoções mal contidas que, de delírio em delírio, condiciona­m a existência dos cidadãos desta curiosa terra de transitori­edades e incertezas. Terra em que nem o Amor parece agora feito para durar.

Mas o Amor tem raízes profundas e onde ele germinou poderá voltar a germinar. E com ele tudo se pode regenerar.

O Amor tem raízes profundas e onde ele germinou poderá voltar a germinar. E com ele tudo se pode regenerar.

Não há uma inevitável imposição, do Universo ou dos Deuses, que previna a redenção dos pecadores, antes pelo contrário. Teremos sempre algum controlo sobre o nosso destino mas cabe também aos pecantes se atreverem a trilhar o duro caminho da expiação.

Estaremos nós dispostos a enfrentar a dureza desse trilho? Dispostos a olhar para nós próprios sem tentarmos nos enganar sobre quem somos e sobre o que estamos dispostos a fazer para tornar o mundo que nos rodeia no mundo em que ansiamos viver?

Escolhamos enxergar-nos com os olhos bem abertos, esse será sempre o primeiro passo para encontrar a luz por entre toda a escuridão que fizemos cair sobre nós.

Alves dos Santos escreve à quinta-feira de 4 em 4 semanas

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