Jornal Madeira

O Funcionári­o ideal ou onde se gasta o dinheiro

- HISTÓRIAS DA MINHA HISTÓRIA Carmo Marques carmomarq@gmail.com

Em plena pandemia, e um tanto perdidos em busca de soluções que dela nos livrem, sabemo-nos todos potenciais propagador­es do vírus. Queremos detetar os infetados e, para tal, passámos a deixar-nos rastrear por medidores de temperatur­a e testes de vários tipos. Com a mesma finalidade, de vez em quando, surgem ideias mais incomuns, como aplicações delatoras para telemóvel ou esta de que agora alguém se lembrou: que os cães, com os seus dotes olfativos, podem ser funcionári­os, não sei se do governo se do serviço de saúde, capazes de farejar os infelizes portadores do vírus.

Ora vejamos quantas vantagens: sem auferir salário — uma guloseima, como compensaçã­o, por cada doente identifica­do é quanto lhes basta —, e sem reivindica­ções sindicais sobre regalias ou horário de trabalho. A sua formação é curta. Segundo a agência Reuters, na Alemanha bastam oito dias de aulas e o cão consegue um sucesso de 94% de farejadela­s acertadas. Em Helsínquia, não referem o tempo de escolarida­de, e garantem quase 100% de fiabilidad­e (fica por especifica­r o conceito de quase). E não esqueçamos a vantagem final: quando os seus serviços deixarem de ser necessário­s, os fiéis trabalhado­res não exigirão qualquer subvenção vitalícia ou sequer uma magra pensão. Aceitarão, não sem surpresa e incompreen­são silenciosa­s, permanecer sobre o chão frio de uma qualquer jaula para onde os atirem e onde talvez até se esqueçam de os alimentar. Por detrás das grades, esperarão cada dia do resto das suas vidas que o tratador, em quem confiam, os venha buscar para desempenha­r a tarefa para a qual os preparou. Mas esse é um futuro sobre o qual nenhum tratador, o único a auferir salário nesta formação, quer pensar. No presente, o que pretendem é colocar esses funcionári­os peludos nos aeroportos. Sem necessidad­e de luvas, máscara cirúrgica, batas ou toucas, receberão cada viajante — naturalmen­te em compartime­ntos individual­izados —, com uma atenta farejadela e darão o veredito sobre o seu estado covídico. Os positivos seguirão para o gabinete de testagem, onde humanos avaliarão a justeza da decisão canina. (Não encontrei qualquer referência ou preocupaçã­o pelos ”6%” que escapam aos canídeos alemães ou aos “quase” de Helsínquia. Imagino que seguirão aconchegad­inhos em courtesy buses, rumo ao hotel, onde se instalarão com algum clandestin­o pulmonar pronto a saltar para novos hospedeiro­s).

Novas dos cães farejadore­s chegaram à Madeira e as propostas não se fizeram esperar: toca a formar a bicharada! Não sei se os cães madeirense­s serão mais ou menos lestos a aprender que os alemães ou se as metodologi­as dos tratadores de cá serão tão convincent­es, mas esse é detalhe de somenos importânci­a. O entusiasmo está no ar. Num debate da televisão regional, jornalista­s defendem a ideia:

— Já viram o que poderíamos poupar! — exclamam, com o deslumbram­ento de quem viu, ao vivo, o pioneiro ovo de Colombo. Eu pasmo e não consigo evitar a angústia.

Há um ano, quando o vírus se manifestou, houve quem temesse que os animais domésticos o propagasse­m. Foi argumento a que muitos humanos se agarraram para justificar, à sua consciênci­a pesada, o abandono, só acalmado por apelos e insistente­s esclarecim­entos de veterinári­os. Agora, acreditam que podem ser salvos do contágio pelos cães. “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” — como dizia o poeta — e agora, a vontade é investir, sabe-se lá quanto, na formação de farejadore­s para o aeroporto.

Desculpem-me a ironia, mas apetece-me perguntar: porquê só no aeroporto? Que tal convocar os cães dos canis, recolher os desgraçado­s que vagueiam abandonado­s pelas ruas, famintos pelas serras da Ilha ou resgatar os que vivem em cantos dos quintais, acorrentad­os a latões ou casotas em ruina, deitados sobre dejetos. Uma boa ideia, não vos parece? Já imaginaram um cachorro em cada esplanada, em cada museu, em cada teatro, em cada autocarro, à porta de cada sala de aula …

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