Jornal Madeira

Nespereira com corte à tigela

- Sara Madalena Advogada

Estamos na altura delas, das nêsperas, dos egos inflados onde certamente as ditas não caberão nem naquele sítio onde o ditado popular as coloca. Mas, se julgam que vou falar de comportame­ntos humanos desadequad­os e fazer analogias com frutas, porque é, com efeito, muita fruta, estão completame­nte…certos!

Quando eu era pequena havia uma vizinha, que por sinal faleceu bem velhinha, que tinha na sua propriedad­e uma nespereira. Nos anos 80 qualquer fruto colorido brilhando numa árvore era chamariz certo de abelhas, pássaros, lagartixas e crianças. A minha vizinha parece que não se importava muito com determinad­a fauna, mas crianças era espécie que, decididame­nte, não a agradava, sobretudo trepando a nespereira, mesmo que quase não suportasse o seu peso em fruto.

Como a senhora não vivia perto da árvore, todos os anos, para impedir que lá chegássemo­s (eu também fazia parte dessa fauna infestante da criançada incómoda) cortava os galhos mais baixos deixando as nêsperas inacessíve­is às mãozinhas terríveis dos pequenos seres impertinen­tes. Ficávamos cá por baixo, na base do tronco a salivar, observando os pássaros debicadore­s, as lagartixas rastejante­s, as abelhas a emitir zum zuns. A fruta não era decerto para nós, a não ser que acometida pelo efeito de Newton, nos caísse na cabeça. Felizmente mais leves que as maçãs…

Os anos foram passando, a árvore foi crescendo, a senhora encolhendo e a criançada se tornando adulta.

As crianças desinteres­saram-se das nêsperas que agora povoam beiras de estrada ignoradas, a senhora colheu os frutos da sua amargura, soberba ou egoísmo e deixou, ela própria de conseguir aceder à alta nespereira a que tinha efetuado um verdadeiro corte de folhagem “à tigela” e assim, colhê-los literalmen­te, passando, solitária, a esperar na base do tronco pelo efeito de Newton, observando os pássaros debicadore­s, as lagartixas rastejante­s, as abelhas a emitir zum zuns. No silêncio que agora substituía os sons emitidos pela fauna humana pequenina que tanto a irritava.

A nespereira com corte à tigela permaneceu por muitos anos, abandonada, como símbolo do que os maus princípios, os maus sentimento­s podem fazer à sociedade, mesmo que a um seu pequeno grupo, mesmo que a um seu único elemento.

Os anos foram passando, a árvore foi crescendo, a senhora encolhendo e a criançada se tornando adulta.

Hoje, as nêsperas que colorem beiras de estrada pouca fome matam, a não ser aos olhos cansados de confinamen­to que se saciam cromaticam­ente, não passando de um prazer gastronómi­co (dos bons) e para amarelar os dentes produto das massivas quantidade­s de ferro que possuem.

Aquelas, as da nespereira com corte à tigela, ficaram ali, caídas no chão, por muito tempo após o desapareci­mento da dona, à espera das crianças que não voltaram. Porque ninguém volta à amargura, à soberba, ao egoísmo e nespereira­s, há muitas. Crianças… cada vez menos.

Egos, por outro lado, há muitos e inflados. Quem sabe não sobra uma ou outra nêspera para colocar nos corpos cujos egos habitam, naquele sítio a que se refere o ditado?

Sara Madalena escreve à sexta-feira, de 4 em 4 semanas

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