Jornal Madeira

Mesa para um

- José Júlio Curado zecurado@yahoo.com

São várias as artérias na baixa do Funchal em que se concentram pequenos restaurant­es. Em muitos deles, há muito que a instalação de algumas mesas de esplanada permitiu aumentar a capacidade de serviço e aproveitar as condições climatéric­as que nos bafejam ao longo de quase todo o ano.

Em face das restrições impostas com o objetivo de, pelo menos, minorar as condições de contágio foram essas mesinhas de esplanadas que permitiram reabrir muitos destes negócios, e agora começam a permitir retomar uma atividade mais consistent­e.

Esta semana, depois de um longo período em que quase toda a atividade tem sido feita a partir de casa, voltei ao coração da cidade. Passo agora mais vezes por muitos destes locais, usufruo deles e vejo-os e às pessoas que os frequentam com um olhar diferente. O que me chamou mais a atenção foi o número mais reduzido de pessoas por mesa. Onde antes me habituei a ver três ou quatro pessoas a almoçar, sentam-se agora, em muitos casos, apenas duas. Mas, pior, deixou de ser incomum ouvir alguém pedir uma mesa para um/a.

Como diz Edgar Morin no seu livro “Pensar Global”, nós, humanos, temos uma essência trinitária. Somos simultanea­mente condiciona­dos pela nossa biologia, pela nossa individual­idade e pela sociedade em que estamos inseridos. Nenhuma destas três dimensões pode estar ausente, nenhuma delas se pode sobrepor de forma avassalado­ra às outras duas.

Ao longo da nossa história, as alterações biológicas são relativame­nte lentas, embora por exemplo seja fácil perceber que em Portugal, em geral, e na Madeira, em particular, a população é hoje mais alta do que há cem anos: Tal facto deve-se muito à alteração da nossa dieta, que é hoje muito mais rica em proteínas. Já as alterações sociais e, principalm­ente, individuai­s são considerav­elmente mais rápidas e a maioria de nós dá-se conta de ambas ao longo da vida.

Desde que, em março de 2020, a CoVID-19 foi classifica­da pela OMS como pandemia, a perceção que temos de nós e do ambiente que nos rodeia, mudou. Desde há dezasseis meses, convivemos menos, com menos gente diferente, estamos mais pobres, estamos mais vezes mais tristes, mais vulnerávei­s. Estamos, sobretudo, mais sós, ainda que nem sempre nos demos conta disso.

Sem nos darmos conta, pedimos mais vezes mesas mais pequenas, mesas para dois, ou para um. Quase sem darmos conta estamos, lentamente, a erodir a nossa dimensão social. Haverá quem defenda que na verdade deslocámos esse vértice do triângulo para as telecomuni­cações, para o computador, para as redes sociais, para um relacionam­ento mediado pela tecnologia, que vivemos no início de uma nova era sociológic­a. Estaremos na antecâmara de uma sociedade simultanea­mente humana e tecnológic­a, uma sociedade “ciborgue”?

Qualquer que seja a resposta, a verdade é que precisamos do convívio, ao vivo, com as outras pessoas. Para construirm­os histórias e memórias significat­ivas com quem interagimo­s faz-nos falta a partilha do espaço, a visão tridimensi­onal, as cores, o cheiro, o ambiente. Faz-nos falta o toque. Os beijos, os abraços…

Uma aldeia, uma vila, uma cidade, não são apenas casas juntas, fazem-se de pessoas, que se ligam, que se conhecem, que se apaixonam, que se amam, que se zangam, que ficam felizes, às vezes tristes, que caiem e se levantam, que recuperam e interagem sempre umas com as outras.

Começa a ser tempo de nos reinventar­mos, de nos reconstrui­rmos numa sociedade mais justa, mais inclusiva mais solidária. De voltarmos a exprimirmo-nos através da arte, da cultura, do desporto. Precisamos de recriar pontes intergerac­ionais, em que jovens e menos jovens possam dar o seu contributo para a cidade, para a pólis. Precisamos de nos apoiarmos uns aos outros, não apenas pontualmen­te, mas por princípio, por solidaried­ade.

Precisamos de reabilitar e repovoar as zonas históricas da cidade, de trazer mais gente, mais nova, de volta ao centro da cidade e com ela, a segurança, a esperança e a confiança no futuro.

É hora de pedir mesas maiores, do tamanho do nosso coração. Cansei-me de mesas para um.

José Júlio Curado escreve ao sábado, de 4 em 4 semanas

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