“Tivemos de construir três hospitais cá dentro”
A pandemia transfigurou por completo o Hospital Dr. Nélio Mendonça, que hoje completa 48 anos. Júlio Nóbrega, diretor clínico, explica em entrevista ao JM tudo o que mudou, desde as 10 mil máscaras usadas em cada dia às diversas fases de recuperação de cirurgias. “Há mais de 10 anos que não se operava tantos doentes em agosto”, declara.
Entrevista com o diretor clínico do SESARAM, no dia em que o Hospital Dr. Nélio Mendonça completa 48 anos.
No mesmo dia em que a Organização Mundial de Saúde declarava a covid-19 como pandemia, José Júlio Nóbrega era anunciado como diretor clínico do Hospital Dr. Nélio Mendonça. Estávamos a 11 de março de 2020, em mais um dos momentos conturbados da Saúde hospitalar. Ano e meio após a tomada de posse, o médico pacificador do SESARAM limita-se a constatar que “as pessoas perceberam que o caminho certo não era aquele”. Confrontado com a gestão da pandemia, Júlio Nóbrega recorda que precisava de três hospitais. “Como não os tinha, tivemos de os construir cá dentro”.
Tudo mudou. “Hoje gastamos cerca de 10 mil máscaras por dia”, atira, a título de curiosidade. “Há mais de 10 anos que não se operava tantos doentes em agosto”, diz, sobre a recuperação da atividade atrasada. “Quando tivermos toda a nossa capacidade esgotada, propomos alugar salas no exterior a entidades privadas, mas os profissionais do hospital vão lá operar os doentes”. Depois, em última instância, quando já estiver tudo esgotado, “vamos pedir aos privados para recuperarem esta atividade com os seus recursos”.
Sem o dramatismo nem os exageros de outras alturas, o diretor clínico assume que há especialidades que podem perder a idoneidade. “Na Madeira temos de tudo: especialidades que não têm idoneidade, outras que têm idoneidade parcial e outras que têm idoneidade total, incluindo a capacidade formativa”, resume Júlio Nóbrega, deixando no ar uma importante constatação: “Nunca vi um alinhamento tão eficaz entre tutela, secretário regional de Saúde, Conselho de Administração e direções técnicas do SESARAM”.
Foi nomeado diretor clínico num momento crítico interno, a que se juntou a pandemia. Como analisa este percurso?
É um percurso que muito me satisfaz. Tem altos e baixos e momentos de cansaço, mas é algo que gosto muito de fazer, porque mantenho em paralelo a minha atividade clínica nos cuidados intensivos. Fiquei muito satisfeito por terem colocado essa hipótese e por poder contribuir para a organização do SESARAM, que foi muito condicionado pela pandemia.
Com a covid-19, o que mudou no hospital?
Aquelas decisões estratégicas de planear o futuro foram muitas delas limitadas, porque realmente foi um reboliço dentro do SESARAM para fazer face à pandemia. [Aquando da minha nomeação] já havia uma Comissão Covid-19 e havia algum trabalho feito, mas muita desta atividade da direção clínica foi a preparação para enfrentar a pandemia, com muita plasticidade. Toda a atividade centralizou-se muito na pandemia, tentando não descurar a outra atividade. A ideia sempre foi controlar a pandemia, mas proteger os nossos doentes.
Houve muitas decisões e execuções sem grande suporte científico para as fa
“Nunca vi um alinhamento tão eficaz entre tutela, secretário regional de Saúde, Conselho de Administração e direções técnicas do SESARAM.” zer. Admiro a coragem dos políticos. Na Madeira temos políticos que são de uma cor e políticos noutros países que são de outra. Não é a questão partidária em si, mas o facto de as pessoas que estão nos órgãos de decisão terem tomado decisões com pouco suporte científico.
Foram necessárias mudanças radicais…
Naquela primeira fase de confinamento geral, pedimos aos doentes para ficarem em casa e para não virem ao hospital, porque podíamos ter um surto muito difícil dentro do hospital.
Depois o equipamento… Hoje gastamos cerca de 10 mil máscaras no SESARAM. Isto era impensável no início. E havia as velhas questões sobre se tínhamos camas e ventiladores… Então o que é que se criou? As decisões basearam-se sobretudo nisto: todos os doentes que viessem ao hospital ou centros de saúde tinham de fazer uma triagem antes de entrar nas instalações. É a chamada pré-triagem, em que perguntávamos ao doente se tinha indicadores que poderiam sugerir estar infetado com covid. Fazendo esta pergunta, conseguíamos triar os doentes. Os que são possíveis covid tinham de ser avaliados em áreas próprias, a chamada triagem avançada e que teve várias áreas e localizações conforme foi sendo possível. Hoje em dia temos uma área fantástica, nova e toda equipada, com quartos de pressão negativa individuais, onde é feita esta pré-triagem.
Foi necessário mexer na estrutura física?
Sim. Lembro-me de estar em casa a olhar para o hospital e pensar que tinha de ter uma área para os doentes covid positivos, uma para os que não são positivos, mas que podem ter covid e que têm de estar em isolamento para não infetar outros, e outra ainda para as pessoas que estão negativas. Temos de fazer cirurgias aos doentes, cateterismos, endoscopias… ou seja, precisava de três hospitais. Não tenho três hospitais, por isso tivemos de os construir cá dentro. E é isso que hoje em dia temos montado.
Como foi a resposta a essas necessidades?
Criámos uma Área de Cuidados Especiais que é uma extensão do Serviço de Urgência, com 14 camas e é destinada a doentes covid. Felizmente não precisamos de a usar.
Depois criou-se também os pré-fabricados junto à Urgência com oito unidades de internamento, onde funciona a zona onde os doentes estão à espera do resultado. Se for negativo, o doente vai para o internamento normal, se for positivo vai para a zona destinada aos casos covid, se for um caso negativo que se pode tornar positivo vai para outra área de internamento. [No caso destes últimos] transformámos a área de Consulta Externa, cujos 19 gabinetes de consulta foram transformados em unidades de internamento individuais.
Havia ainda uma unidade no 3.º piso que estava em fase avançada de construção, mas ainda em cimento, e acelerou-se o processo de conclusão das obras. Fez-se a Unidade de Internamento Polivalente de covid-19, que é uma área com todas as condições, onde se consegue colocar 30 doentes com diferentes níveis de gravidade, com uma ala com oito camas de cuidados intensivos.
Por causa da covid-19, foram descuradas outras áreas médicas?
Não foi descurar, mas foi limitar de propósito a atividade eletiva. Ou seja, adiou-se a atividade que poderia ser adiada, mas não por desleixo. Foi voluntariamente, para proteger essas pessoas.
Os atrasos que já existiam agravaram-se substancialmente?
A pandemia assumiu outras proporções e ganhámos tempo. Equipámo-nos, criámos circuitos e áreas de internamento. Já sabíamos que havia atividade clínica atrasada e a pandemia veio, de forma significativa, adiar isso. Agora há que recuperar essa atividade, o que já aconteceu no ano passado. Nos meses de verão, operou-se mais doentes do que em 2019. Este ano, até ao dia 23 de agosto, tínhamos feito mais cirurgias em 23 dias do que em agosto de 2020 e de 2019. Há mais de 10 anos que não se operava tantos doentes.
Como está a ser feita essa recuperação?
Havia um planeamento tradicional, em que o Bloco Operatório diminuía a atividade nos meses de férias. Exatamente para tentar recuperar o que não foi feito por causa da pandemia, os serviços de anestesia e cirúrgicos fizeram um esforço adicional de disponibilizar tempos de Bloco para poder recuperar cirurgias. Portanto, neste momento, estamos a desenvolver um Programa Especial de Recuperação de Atividade Clínica eletiva, não urgente, porque a urgente foi sempre feita. Queremos recuperar a outra atividade que pode ser calendarizada.
Como tenciona fazer?
Neste momento, estamos a desenvolver um Programa Especial de Recuperação de Atividade Clínica, que já está numa fase avançada e temos tido reuniões com as entidades privadas prestadoras de cuidados de saúde. Vamos ter de pedir aos profissionais de saúde que exerçam consultas, exames complementares de diagnósticos e cirurgias para além do seu período normal de trabalho e queremos fazer isso acorrendo a colaboradores externos, porque algumas especialidades têm uma equipa médica curta. Ou seja, pessoas que vêm de outros hospitais ajudar-nos.
Uma segunda hipótese é alugar salas no exterior a entidades privadas, mas os profissionais do hospital vão lá operar os doentes. E, em última instância, quando já está tudo esgotado, pedimos aos privados para recuperarem esta atividade com os seus recursos.
Como estamos em termos de formação de futuros médicos?
Temos um total de 208 médicos que estão em formação, 39 em geral (o primeiro ano depois da Faculdade), 53 com formação especializada em Cuidados de Saúde Primários, dos quais 50 em Medicina Geral e Familiar e 3 em Saúde Pública, e 126 médicos em formação especializada hospitalar nas várias especialidades. Daí esta sequência do Programa de Recuperação de Atividade Clínica. Se “passamos a bola para o lado de lá” como é que será com os nossos internos? Daqui a seis anos não teríamos cirurgiões…
A Madeira tem algumas ‘cadeiras’ dos cursos de Medicina. Como é o relacionamento com a UMA?
O SESARAM tem um acordo com a UMA para formar graduados. Até este ano, eram apenas os dois primeiros anos que eram lecionados na Madeira. A partir de agora são três anos. Aumentando a formação, no terceiro ano os alunos têm muitas cadeiras clínicas e aulas que são dadas
“Estamos em 2021 e temos doentes amanhã e depois de amanhã. Não posso comprometer o que vamos fazer só porque em
2027 vamos ter uma coisa muito diferenciada. Creio que seis anos é um intervalo grande e que se justifica apostar fortemente nas áreas mais deficitárias do SESARAM.” junto aos doentes. Depois temos a formação pós-graduada. Recebemos internos cá, e isso está condicionado pelas idoneidades formativas dos serviços. Além disso, participamos em outras formações fora do SESARAM. Temos muitos profissionais que são monitores de cursos de formação pós-graduada fora da Madeira. E para além destes profissionais em formação interna, entre o ano passado e este ano, contratámos 59 médicos especialistas.
Houve uma altura em que se falava muito da “perda de idoneidade” de algumas especialidades. O que é que mudou?
Continua igual. Os serviços são classificados como tendo ou não idoneidade (parcial ou absoluta) para formar médicos numa determinada especialidade. A Ordem dos Médicos faz visitas regulares aos serviços e tenta avaliar se aquele serviço tem o número de doentes, profissionais e técnicos suficientes para que um médico que esteja em formação esteja também capaz de exercer aquela especialidade de forma autónoma. Este ano já tivemos visitas de idoneidade.
Há alguma especialidade em risco?
Há. Na Madeira temos de tudo: especialidades que não têm idoneidade, outras que têm idoneidade parcial e outras que têm idoneidade total, acrescendo a isso ainda a capacidade formativa. Desde há alguns anos que não havia concursos para assistente graduado sénior [grau mais elevado na progressão da carreira de médico]. Este ano, em Portugal abriram 250 vagas. Na Madeira abriram 53 vagas para assistentes graduados sénior nas várias especialidades, o que é muito significativo. Há uma grande abertura deste Conselho de Administração em relação a nós, clínicos. Nunca vi um alinhamento tão eficaz entre tutela, secretário regional de Saúde, Conselho de Administração e direções técnicas do SESARAM.
Agora há menos polémicas em torno do hospital. Como tem gerido tantas sensibilidades?
Não quero pensar nisso. Quando as pessoas estão mandatadas só temos de as respeitar. O que fazem nem sempre corre bem. O que é louvável neste momento é as pessoas perceberem que o caminho certo não era aquele. O que aconteceu, aconteceu. Para mim é uma questão estratégica não pensar muito nisso.
Ainda não falámos da construção do novo hospital. Como é que todo este trabalho entronca nessa obra estrutural?
Antes da pandemia participámos ativamente no projeto do novo hospital. Esse projeto tem sofrido sucessivas readaptações às novas realidades. Uma delas é a da pandemia. Há coisas que têm de ser e que já foram melhoradas no projeto. Se tudo correr bem temos doentes a entrar no novo hospital em 2027.
Justifica-se fazer obras quando vamos ter um novo hospital em 2027?
Acho que sim. Estamos em 2021 e temos doentes amanhã e depois de amanhã. Não posso comprometer o que vamos fazer só porque em 2027 vamos ter uma coisa muito diferenciada. Tudo o que se fizer agora tem de ser otimizado de forma a que possamos levar equipamento para o novo hospital. Creio que seis anos é um intervalo grande e que se justifica apostar fortemente nas áreas mais deficitárias do SESARAM.
O Programa de Recuperação e Resiliência vai transbordar alguma verba para o hospital atual?
Temos projetos para recorrer ao Programa de Recuperação e Resiliência. Existem verbas alocadas à melhoria de seis serviços hospitalares, incluindo um que precisa de uma melhoria significativa, que é o Serviço de Urgência.
O SESARAM não pode descurar a tecnologia. Estamos na vanguarda ao nível da inovação?
Sim. Estamos a assinalar o aniversário do SESARAM e o que se faz hoje em dia é completamente diferente do que se fazia há uns anos. A área cirúrgica é um bom exemplo. Hoje fazemos cirurgias com equipamentos altamente diferenciados. Outro exemplo é o Icu4covid, um projeto europeu de telemedicina aplicada aos Cuidados Intensivos, sobretudo aos doentes covid. Está numa fase experimental, mas queremos ir mais à frente e evoluir para a inteligência artificial.