Jornal Madeira

Ia, arde, “oite”

- CULTURAS GLOBAIS E CRIATIVIDA­DE João Paulo Freitas jplflf@gmail.com

Ésabido que o dialecto Madeirense é sui generis, rico, apressado, contempla sotaques que variam de localidade para localidade e essa é talvez a magia. Se dois verdadeiro­s madeirense­s falarem entre si, um português de Portugal continenta­l corre o risco de ficar fora de contexto. Há aqueles que têm orgulho no seu falar local com carregado assento, há aqueles que puxam pela veia para dar uma de “fashion” e ficar fino. Há de tudo e está tudo bem.

Recentemen­te um artigo noticioso referia que o sotaque era factor de exclusão nas entrevista­s de trabalho na grande Lisboa. Ou seja, tem de estar tudo a puxar pela veia senão não há trabalho, mesmo que o Mestrado ou Doutoramen­to tenha sido tirado em Cambridge ou Oxford. O tal mundo das superficia­lidades que parecemos ter de viver, em que o sumo parece ser menos importante que a casca. Claro que não será bem assim e esse artigo como outros pode ser refutado e alvo das mais variadas análises.

Por cá, já há algum tempo que venho desenvolve­ndo uma espécie de teste a ver se o Ia, o arde e o “oite” resultam. Da minha parte e humilde opinião que não vale de muito, sinto-me muito mais feliz de ouvir os distintos dialectos de cada localidade. Não espero que um homenzinho a podar a vinha para os lados do Arco de São Jorge fale comigo a puxar pela veia. Seria aterrador. Mas como dizia, há algum tempo que venho fazendo o teste do Ia, arde e “oite” que é, traduzindo por miúdos, uma forma muito comum de dizer Bom dia, Boa tarde e Boa noite pela Ilha da Madeira. Devo dizer que resulta na perfeição, sobretudo nas zonas mais rurais da Ilha. De manhã basta dizer Ia, de tarde basta dizer Arde e de noite basta dizer “Oite”. É um desembaraç­o, poupa tempo e veia porque a boa gente da Ilha tem mais que faça.

Por outro lado, outro teste relacionad­o com estes três simples actos de boa educação, tem vindo a ser realizado em alguns pontos do globo por sociólogos e outros académicos das áreas sociais. É um lado mais triste da questão e normalment­e acontece aquando da presença de humanos mais das urbes ou atarefados com a vida frenética dos dias de hoje.

Esta simples boa educação parece ser algo estranho e que resulta nas mais diversas reacções, desde o estranhame­nto, o embaraço, as carrancas e assim que tal. Sem grandes rigores matemático­s, referem que 4 em 10 pessoas sente-se embaraçada com um simples bom dia, boa tarde ou boa noite. Sem julgamento­s, cada um está na sua vida, no seu smartphone, etc. O facto é que a boa educação parece ser estranha nesse glorioso mundo moderno. Fica a reflexão.

Vivemos tempos em que existe uma tremenda oferta de tudo e mais alguma coisa que quase rebenta o filtro de cada qual. Há receitas para tudo, coaching para tudo, está muito na moda tornar-se a melhor versão de si mesmo, saber ler as expressões faciais dos demais e adivinhar o que vai lá por dentro, tudo tem de ser espectacul­ar, óptimo, tem de estar sempre sol, um ventinho atrapalha, enfim; parece ter de ser um mundo perfeito à medida de barbies e kens e desde que traga felicidade (autêntica, não aquela sem sal e vazia só para ficar bem na foto) está tudo bem, mas… Com tanta perfeição, que não nos deixemos espalhar no mais elementar. A boa educação é muito subjectiva, mas que ainda possa ser intersubje­ctiva e um Ia, uma Arde e uma “Oite” às vezes pode valer pelo dia, tarde ou noite de alguém.

Quanto a mim fico contente de ser suficiente um bom Ia, uma boa Arde, e uma boa “oite” por esses recantos onde ainda existe o orgulho nas suas raízes e não um caminho para sermos todos iguais e não necessaria­mente bem-educados.

Até…

João Paulo Freitas escreve à segunda-feira, de 4 em 4 semanas

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