Jornal Madeira

Não sei onde vivo

- Helena Oliveira Psicóloga

Ainda antes do avião aterrar, avistamse paisagens deslumbran­tes, montanhas que se pretendem percorrer e uma imensidão de água que é obrigatóri­o mergulhar. Avistam-se casas bem lá no cume e a mente vagueia por toda aquela habitação e quem nela reside. “Também quero viver ali”, pensamos.

A aterragem é “perfeita”, o clima é esplendido, a simpatia é de um povo que nos deixa encantados, a limpeza da cidade e o ar que respiramos… falam connosco para ficarmos.

Qualidade de vida de uma terra que se deseja VIVER.

Enquanto passeias pelo alcatrão, continuas a avistar o que de cima te admirava. Decides subir, decides ficar, decides perguntar, decides VER.

Entre ruas e veredas, Impasses e caminhos, tem trilhos e cadilhos. Sobes 89 degraus (quando não são mais), irregulare­s que dão acesso a atalhos de terra batida. Verificas, que a qualidade de vida que do cimo te iludiste haver, era apenas uma ilusão.

A cidade é o encanto, contudo, em toda a ilha há também cidades escondidas. Escondidas para alguém aceder a um “teto”, ou a uma casa ou apenas a um sítio para tirar a sua subsistênc­ia na agricultur­a.

Lá, onde subi, vi pessoas sem condições de habitação, vi solidão, vi idosos acamados, vi crianças que demoram horas para aceder a um transporte escolar, vi revoltas e vi que pelos trilhos as ambulância­s não sobem, os bombeiros suam e correm para chegar a tempo de salvar uma vida, vi, que não sei onde vivo. Perdi-me por ali.

A transparên­cia de olhares tristes mostravam o que lhes sobrava, olhar a foto de alguém que já partiu, a companhia que lhes restava. De uma forma subtil, falavam da perda, da ausência de quem partilhou uma vida e que agora, nada existe, nem mesmo ao redor. As cicatrizes de uma vida difícil, de uma agricultur­a sem acessos, de trilhos arrastados pela força da natureza, fazem com que tenham de agir com cautela. Muitos resgatam as pequenas forças que ainda existem, outros desistem simplesmen­te. Quando o sol brilha, ainda sonham, quando a chuva surge choram com ela. Dali, no cume, há gente que é nossa gente, que EXISTE, que precisa de saber onde vive e não apenas avistar o que de baixo é apenas uma ilusão.

Dali, no cume, há gente que é nossa gente, que EXISTE, que precisa de saber onde vive e não apenas avistar o que de baixo é apenas uma ilusão.

Compromiss­o? Responsabi­lidade? Transparên­cia? Não sei onde vivo. Quero, que quando subir uma estrada mesmo sem estrada, subir 89 degraus, andar por terra batida, encontrar uma vida que seja vivida na transparên­cia, no compromiss­o e na responsabi­lidade que um dia lhes foi prometido.

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