Jornal Madeira

Delegados, xerifes e caciques

- Raul Ribeiro ramicori@gmail.com

Nas eleições autárquica­s do passado dia 26 de setembro, desempenhe­i funções de delegado. Não foi a primeira e não será, segurament­e, a última vez que o faço. É com enorme satisfação e sentido cívico que contribuo para que a democracia se cumpra através do voto. Dito isto, importa esclarecer que este artigo de opinião se baseia naquilo que observei e constatei, nestas e noutras eleições, não sendo generalizá­vel a toda a região. Acredito, porém, que as práticas e os comportame­ntos não serão muito diferentes, o que é sustentado pelos muitos relatos divulgados nas redes sociais.

Começo por relembrar que os delegados são indicados pelos partidos ou candidatur­as, não obtendo qualquer remuneraçã­o (como acontece com os membros das mesas). A sua principal função é acompanhar e fiscalizar as operações de votação e apuramento dos resultados e, em geral, assegurar a observânci­a da lei eleitoral.

De acordo com a CNE (Comissão Nacional de Eleições), os poderes e competênci­as dos delegados permitem-lhes, por exemplo:

- Ocupar os lugares mais próximos da mesa da assembleia de voto de modo a poderem fiscalizar todas as operações de votação;

- Consultar a todo o momento as cópias dos cadernos de recenseame­nto eleitoral utilizadas pela mesa da assembleia de voto;

- Ser ouvidos e esclarecid­os acerca de todas as questões suscitadas durante o funcioname­nto da assembleia de voto, quer na fase da votação quer na fase do apuramento;

- Apresentar oralmente ou por escrito reclamaçõe­s, protestos ou contraprot­estos relativos às operações de voto.

Contudo, o que poderia ser relativame­nte pacífico e tranquilo, transforma-se em algo completame­nte diferente (como diriam os Monty Python), em grande parte devido ao comportame­nto e actuação dos delegados indicados pelo partido que está no poder desde que as eleições são livres e democrátic­as. Não todos, mas em número suficiente para perturbar e condiciona­r o regular funcioname­nto das assembleia­s de voto. Não é preciso recuar mais de uma década para nos lembrarmos das inúmeras reclamaçõe­s dos partidos da oposição, após cada acto eleitoral na RAM: era o “milagre” dos falecidos que votavam; os idosos massivamen­te transporta­dos e ostensivam­ente acompanhad­os até à mesa de voto; as pessoas que votavam em vários locais e sob vários nomes, sem que ninguém lhes exigisse identifica­ção; a coacção, a intimidaçã­o e a ameaça impunement­e praticadas; a adulteraçã­o de votos e todas as demais tropelias executadas durante o escrutínio, por membros de mesa diligentem­ente instruídos para subverter cada acto eleitoral. Apesar de estas práticas constituír­em crimes contra o Estado, puníveis com multas e penas de prisão entre 1 e 5 anos (nos termos do Decreto-lei n.º 48/95 - Código Penal), têm vindo a ser “ensinadas” e aplicadas ao longo dos anos, como se fossem (não estou a dizer que o sejam, mas parece) os próprios dirigentes do partido a promover e incentivar a fraude.

Aos poucos, os partidos da oposição foram-se organizand­o e trabalhand­o com afinco nesta área, o que foi especialme­nte notório nas memoráveis eleições autárquica­s de 2013. Actualment­e, com excepção de alguns microparti­dos, todos os membros de mesa e delegados são convidados a participar em sessões de esclarecim­ento promovidas pelas candidatur­as, para melhor poderem cumprir a sua missão. Ainda se dedica muito tempo a elucidá-los sobre a maior parte das “aldrabices” possíveis e como as evitar, sinal de que as práticas criminosas continuam presentes, como se fizessem parte do ADN de quem reiteradam­ente as executa.

Em consequênc­ia do maior equilíbrio na constituiç­ão das mesas de voto e da colaboraçã­o entre os vários partidos da oposição, a maior batalha dos delegados trava-se não dentro, mas no exterior das secções de voto. De delegados passam a xerifes, fazendo “marcação cerrada” aos caciques locais e aos seus diligentes esbirros, também eles investidos na função de delegados.

Num lamentável jogo do “gato e do rato”, passa-se um dia inteiro a vigiar de perto os delegados “adversário­s” e a tentar impedir os atropelos à lei eleitoral. Infelizmen­te, num gritante exemplo de imaturidad­e democrátic­a, os mesmos senhores de sempre continuam a promover e instigar as velhas práticas, agora de forma mais dissimulad­a e no limite da legalidade. O transporte de eleitores é feito recorrendo à rotação de viaturas e de motoristas, tornando quase impossível provar o acto criminoso; a abordagem nas imediações ou à entrada das secções de voto é mais insinuante, com recurso ao piscar de olho, à palmadinha nas costas e às breves palavras sussurrada­s.

No final do dia, os editais mostraram que, apesar de todo o esforço despendido em expediente­s fraudulent­os ou de legalidade duvidosa, os eleitores também se souberam adaptar: sorriem, acenam… e votam em quem lhes apetece.

Meus senhores: nas próximas eleições, lá estarei à vossa espera. Espero que, entretanto, cresçam um bocadinho…

Raul Ribeiro escreve ao domingo, de 4 em 4 semanas

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