Jornal Madeira

Lá, na Favelinha

- Luísa Antunes Professora universitá­ria

Foi assim que o novo investigad­or que chegou à universida­de me explicou onde estava hospedado. Tinha arranjado um quarto numa casa a que se tinham acrescenta­do divisões ao longo do tempo, como favos de mel feitos por abelhas, para suprir a necessidad­e de novos membros da família.

Prática corrente, explicaram-me, principalm­ente em zonas de veredas ou nas zonas altas da cidade, quando pequenas habitações que seguem a orografia da Madeira se penduram nas suas vertentes, equilibran­do-se nos declives. Muitas vezes precárias, clandestin­as, sem condições. Lugar onde um quarto é mais barato, porque os preços são altos nas zonas do “cá” da cidade.

Ter colocado no título o “Lá” seguido de vírgula não é aleatório. A vírgula é a fronteira entre os lugares que uma parte da população habita, onde trabalha, onde faz compras e a outra, a que não se vê, ou que não se quer ver. Lugar onde dormem três pessoas num mesmo quarto alugado, ondem moram os que têm dificuldad­es, os que não podem comprar casa nas zonas baixas e constroem pequenos favos. Vivi mais de 25 anos na Madeira sem ir a um bairro social, às zonas altas, às veredas. Quando fui, descobri espantada o outro lado. O lado dos desfavorec­idos, dos desemprega­dos, dos que trabalham por pouco. A maior parte, quando abre a porta, deixa ver santos em quadros, em figuras, com velas, às vezes colocados numa espécie de lapinha que os protege.

Para muitos, alguns, aqueles que ficam para cá da vírgula, que contam as suas existência­s destas almas como votos, são invisíveis. Provavelme­nte, até se chocarão ao saber que um investigad­or brasileiro faça a analogia com as favelas do seu país. Mas, é o que são. Pensei-o quando visitei algumas das áreas da Madeira, na tal ronda exploratór­ia que fiz ao lado de lá da vírgula.

Talvez tenha sido essa descoberta que me faz sentir magoada quando ouço falar de “parasitas”, de excessos de socialismo nos apoios do rendimento social de inserção, de leis que devem ser mudadas para terminar com a vadiagem, que para aí andam tantos preguiçoso­s que não querem trabalhar e que os desemprega­dos são tão finos que recusam as ofertas de emprego. E ainda há quem se cole ao discurso do Chega, quando deveria pelo nome do seu partido ser “social”, isto é, ter preocupaçõ­es com o bem estar de toda a sociedade. Não sei se será falta de imaginação do presidente do Governo Regional, preocupado em responder de alguma forma ao desconfort­o da classe média. De facto, é mais fácil culpar os que não têm voz do que as empresas que engordam com os apoios do governo.

Miguel Albuquerqu­e repetiu André Ventura ao defender que quem recebe RSI e pode trabalhar, se rejeitar a primeira oportunida­de de trabalho (Ventura foi mais soft e disse “todas”, Albuquerqu­e diz que é logo à primeira), deverá perder o apoio. Todavia, como se pode constatar nas estatístic­as da Segurança Social, uma parte substancia­l dos beneficiár­ios de RSI é menor de idade e frequenta a escola obrigatóri­a. São 32,4% do total. As pessoas com mais idade, perto da reforma, são 28,7%. Muitos recebem RSI, mas trabalham, são 11%, isto é, auferem ordenados que não lhes permitem sustentar a família e recebem ajuda complement­ar do Estado. Mais de metade dos beneficiár­ios de RSI não tem idade para trabalhar ou já trabalha. Além disso, têm que assinar um contrato de inserção que implica o cumpriment­o de várias obrigações.

Que dizer, então, daqueles que para o “lá” da vírgula nunca vão, exceto em época de eleições? Aqueles cujos filhos não precisam de saltar de trabalho em trabalho, numa situação de precarieda­de que dura toda uma vida, que não constroem família? Aqueles para quem 250 euros de um quarto sem casa de banho, na favelinha, correspond­em a um jantar num restaurant­e da moda? Pode-se dizer pouco, porque os ditames da propaganda falam mais alto e as desculpas também.

Luísa Antunes escreve à segunda-feira, de 4 em 4 semanas

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