Tribalismo, dissonância cognitiva e a invasão de edifícios
Assistimos, no início do mês, à vandalização das sedes dos três poderes em Brasília, num acontecimento similar ao que tinha ocorrido dois anos antes em Washington. As semelhanças incluem ainda recusas em aceitar resultados eleitorais, teorias da conspiração, ideias bizarras sobre a realidade e manipulação e mobilização através de redes sociais, onde todos os delírios são possíveis. Uma preocupante tendência que se tem vindo a verificar, cuja origem é complexa, mas que deve receber a atenção e mobilizar os agentes e as instituições, que devem mostrar a força da democracia, incluindo na punição daqueles que a querem destruir.
Este extremismo, influenciado por certas lideranças e financiado por certos agentes, encontra-se já num novo patamar: se antes procurava minar o funcionamento das instituições e aproveitar-se da frustração das pessoas, estamos agora num plano em que nem os resultados eleitorais são aceites, se não agradarem. E se aquela invasão, vista a esta distância, foi uma folclórica tentativa de golpe, a verdade é que o pano de fundo que mobiliza e caracteriza aquelas gentes continua lá. Estamos preparados para conviver com movimentos que nem sequer aceitam resultados de eleições livres?
Um dos aspetos mais característicos destes movimentos, além das certezas morais e da divisão sectária entre o “nós e eles”, corresponde à forma peculiar com que lidam com a realidade: se o nosso candidato não foi eleito, então houve fraude; se houve vandalismo, então foi porque alguém se infiltrou no movimento.
Quando nos confrontamos com uma realidade que contraria as nossas crenças ou atitudes, diz-se que estamos num estado de dissonância cognitiva - a realidade não confirma o que pensamos e daí ocorre uma espécie de desconforto psicológico, de dimensão proporcional à importância que o assunto tem para nós. Normalmente, há duas formas para lidar com esse desconforto psicológico. Uma é mudarmos a nossa crença ou atitude, uma vez que a realidade não confirma a nossa ideia inicial. A outra forma, paradoxalmente, é a que vai no sentido oposto, isto é, resolvemos a dissonância reforçando ainda mais aquilo em que acreditamos. E a partir daí, o céu é o limite - até é possível não acreditar em resultados eleitorais!
Se muitos dos que votaram em certas personagens parecem viver numa realidade paralela de ideias delirantes e têm predisposição para a transgressão - a lei e ordem apenas se aplica aos outros - certamente que há também muitas pessoas que não se enquadram nesse perfil e que, portanto, são mais capazes de processar a realidade. Pessoas com quem é possível interagir, no confronto democrático de ideias, e que até a forma como votaram decorreu sobretudo de um clima de polarização e de confrontos identitários.
Se não nos queremos habituar a que o extremismo ocupe todo o espaço, mas que fique o mais circunscrito possível, é também nessas pessoas que importa pensar, investindo-se na prevenção da radicalização e promovendo o terreno comum e o consenso democrático - obviamente não obstante as diferenças - no qual as forças moderadas têm um papel central. E é também importante pensar na necessidade das forças e agentes democráticos se focarem no que preocupa essas e todas as pessoas, bem como, já agora, terem um comportamento que não incentive nem reforce as crenças tribais e conspiratórias por parte de quem a elas é suscetível.
Renato Gomes Carvalho escreve à quinta-feira, de 4 em 4 semanas