Jornal Madeira

Dia de luta contra o cancro

- Hugo Amaro

Assinala-se hoje o dia mundial de luta contra o cancro, mais um dos milhentos dias que se vão criando para destacar este ou aquele evento, facto ou ideia e de que no dia seguinte já ninguém se lembra. Deita-se uma moedinha na caixa da Liga, porque fica bem e recebe-se um autocolant­e na lapela que se exibe com o orgulho do dever cumprido. No alheamento dos dias, a doença, o sofrimento e a morte são entrevisto­s pelo homem comum, na sua pretensa intocabili­dade e imortalida­de, como algo nebuloso e distante que só acontece aos outros. Se o infortúnio não nos tocar pessoalmen­te, passa por nós numa atitude de leviana indiferenç­a ou num breve arrepio de misericórd­ia. A fome em África, as guerras e maleitas do mundo, espreitada­s com curiosidad­e nas televisões, são coisas longínquas que logo se afastam do pensamento e a vida segue igual. O mesmo se passa quando a doença, ou a morte, toca na porta do vizinho. Guardase um momento de surpresa e leve comiseraçã­o que logo se dissipa como facto consumado que não nos belisca verdadeira­mente no egoísmo alucinado dos dias. Todos vamos morrer e todos somos potencialm­ente clientes do cancro. Era bom que o dia que se comemora fosse aproveitad­o para parar e reflectir sobre a condição humana, as suas relações e as pequenas e grandes patifarias que lhes andam associadas e procurar refinar o sentido da solidaried­ade perante o sofrimento alheio. Tomar a consciênci­a de que onde alguém sofre, eu também estarei sofrendo como membro da espécie humana. Como alguém disse: “não perguntes por quem os sinos dobram, eles dobram por ti”. E não basta uma visita curiosa e da praxe social a um leito hospitalar ou uma manifestaç­ão condoída nas redes sociais por mera necessidad­e de exibição ou protagonis­mo. A humanizaçã­o, mais do que piedosas intenções ou esgares lamechas, impõe a dignificaç­ão de um diagnostic­o atempado, de terapias ao alcance de todos, independen­temente da condição social ou económica, de uma atenção generaliza­da e universal nos cuidados paliativos ou do direito a morrer condigname­nte com o auxílio do Estado quando for essa a vontade última do doente. Hoje a arte médica garante que o diagnóstic­o de cancro não é uma condição fatal e que em muitos casos é reversível e curável. Mas infelizmen­te ainda é uma sentença de morte para muitos. E muitos destes, desenganad­os pela ciência médica agarram-se à crença desesperad­a e compreensí­vel de que a desdita pode ser revertida por um ente divino em quem depositam toda a esperança. Não me interessam aqui as manifestaç­ões institucio­nais das multinacio­nais do credo, mas tão só a convicção pessoal profunda numa entidade superior e com a força suficiente para mudar o destino da doença e da vida. Quem crê leva consigo o aconchego de alguém que o acompanha paternalme­nte e o escuta nas suas preces, confiando na cura ou aceitando resignadam­ente que a desventura terá um qualquer desígnio superior a compensar numa futura vida eterna. Outros mais cépticos, na irremediab­ilidade do seu estado, acabam por fazer um apelo às instâncias de que duvidaram, como último recurso de esperança. Mas que dizer dos não crentes, aqueles para quem não existe esse consolo de acompanham­ento superior e paternal? Aqueles que firmemente acreditam que tudo é um mero acaso, um infortúnio que acaba ali e que a vida é uma lotaria insondável, sem qualquer sentido, que os faz sofrer cruamente e a sós? É inquietant­e constatar que a solidão que enfrenta um não crente é incomensur­avelmente mais penosa. E quanta coragem há em persistir nessa convicção solitária. Por tudo isto, não perguntes por quem os sinos dobram, eles dobram por ti.

Hugo Amaro escreve ao sábado, de 4 em 4 semanas

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