Jornal Madeira

Numa terra de abril

- Emanuel Gomes Professor Emanuel Gomes escreve à segunda-feira, de 4 em 4 semanas

Foi há cinquenta anos, numa terra que veio a ser de abril. No dia 25, logo pela manhã, chegava a notícia. Revolução, em Lisboa. Os militares tomavam o poder na República e a rádio (o único canal de televisão só transmitia a partir das 18h) repetia à exaustão uma voz severa e cadenciada. Anunciava-se o fim do regime, do então denominado Estado Novo e o fim da guerra colonial. Ufa. A alegria explodiu e contagiou tudo e todos. Tomou conta da rua. Aos dezassete anos, nada melhor podia acontecer. São vivências e histórias que os jovens de agora nunca vão poder contar.

Saber que já não se vai combater em África, saber que agora há liberdade, um conceito desconheci­do na época, trouxe sensações novas e inesperada­s. Todas as vidas ficaram suspensas. Os trabalhos ficaram suspensos. Os deveres ficaram suspensos. Acabou-se a idade da inocência. Agora, somos livres, gritava-se na rua sem saber o que isso significav­a depois de décadas de escuridão.

Seguiu-se o PREC. Período Revolucion­ário em Curso. Com o poder central nas mãos dos militares e um “povo unido” a gritar pelas ruas e praças que jamais seria vencido. A terra pequena aderiu ao movimento revolucion­ário, marcando também todos os exageros da época.

Com o Padre Martins, ainda jovem sacerdote e pároco da Ribeira Seca, à frente da multidão, Machico vinculou-se para sempre como Terra de Abril, com toda a carga de significad­o que isso possa ter. O lado positivo de abraço à mudança, à liberdade, de condenação à ditadura acabada de sucumbir. O lado negativo por perfilar exageros revolucion­ários que levaram décadas a esfumar-se e a perder-se na força da razão democrátic­a.

Aos olhos dum jovem, tudo isso era entusiasma­nte. Foram as ocupações ilegais de prédios públicos e privados, foram os piquetes populares de faixa vermelha no braço, a fiscalizar os preços dos produtos nas vendas, foi a multidão instigada a gritar junto aos hotéis “O D. Pedro é nosso”, “A Matur é nossa”, o “Holliday In é nosso”, assustando empresário­s e turistas. Foram as batalhas campais junto à Câmara Municipal, a ocupação à força e ilegal dos Paços do Concelho. Foi a desocupaçã­o violenta do edifício, pelos militares, vindos do Funchal. As granadas lacrimogén­ias para dispersar a multidão. Um verão quente de setenta e cinco com inscrições pró e contra nas paredes. Foi o então chamado “tribunal popular” que começou com a intenção de dar uma lição a uns rapazes que se “atreveram” a grafitar contra o “povo unido”, acabando numa espécie de julgamento público que obrigou à intervençã­o dos militares. Foi a ocupação e desocupaçã­o da Casa das Bordadeira­s (hoje Casa do Povo) com nuvens de pedradas que duraram horas. Foi uma festa revolucion­ária só normalizad­a com o tempo. Com muito tempo.

“Machico, Terra de Abril” tem na sua fundação todas essas tropelias. Na sua evolução, marcada pela adesão calculada ao Partido Socialista, ficou a matriz populista e a aversão estratégic­a ao poder Regional do PSD de Alberto João Jardim.

Hoje, infeliz e paradoxalm­ente, esse espírito populista, essa motivação antissiste­ma, essa predisposi­ção para ser do contra, soma eco na nova realidade política que vem tomando conta do País, da Região e de Machico.

Afinal, 50 anos depois de se apregoar liberdade e democracia, o “Machico, Terra de Abril” acabou por ser um chão por onde cresce o novo populismo da direita radical do Chega. Sim, o cresciment­o local do Chega medra nos escombros desse abril. Basta ler a evolução eleitoral nas mesas de voto da Ribeira Seca, em Machico.

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