Jornal Madeira

‘Deserto’ pintado de verde esconde-se no norte da ilha

Um cenário pitoresco confere uma beleza particular ao sítio dos Lamaceiros, na Boaventura. Apesar do panorama encantador e do sossego reconforta­nte, a escassez de moradores torna a localidade deserta.

- Por Lígia Neves ligia.neves@jm-madeira.pt

É talvez um dos locais mais remotos da Região, mas certamente um dos mais agradáveis. Localizado na Boaventura, nas imediações da Fajã do Penedo, encontra-se o sítio dos Lamaceiros. Embora se trate de uma área detentora de uma beleza ímpar, não é o suficiente para que se fixem moradores, que são cada vez mais escassos por aquelas bandas.

À procura deste destino ‘perdido’, a equipa de reportagem do JM seguiu à Boaventura, percorreu curva e contracurv­a, passou a Igreja do Imaculado Coração de Maria, na Fajã do Penedo, e continuou a subir e subir até chegar à Estrada dos Lamaceiros.

Deparámo-nos, após a subida, com um planalto coberto de socalcos esculpidos entre os campos, bem como vários palheirinh­os, muitos dos quais deixados ao abandono. Com as montanhas como pano de fundo, que na manhã de quinta-feira iam ao encontro das nuvens que pairavam no céu, entrámos num cenário verdejante onde o silêncio era tal que pouco mais se ouvia além do chilrear dos pássaros e o zumbido de alguns insetos.

Alguns dos palheiros albergavam galinhas que denotavam o teor campestre daquele sítio. Às voltas pelo local, as poucas pessoas com que nos cruzámos estavam de enxada na mão a trabalhar os terrenos que, por sinal, servem de sustento a quem os cultiva.

Seguimos em busca de residentes dispostos a nos dar uma pala

vrinha e acabámos por conhecer José Pestana Louro. Embrenhado na sua fazenda, ao nos pôr a vista em cima, prontament­e assentiu que parássemos para conversar consigo. O seu cão, Pipocas, depressa nos veio receber, de cauda a abanar, e o dono sentou-se junto à entrada da casa para nos relatar a sua história e descortina­r um pouco da localidade onde habita.

O residente, de 77 anos, fez saber que, quando era miúdo, ali viviam umas nove famílias compostas por cerca de 50 pessoas, desde os mais novos aos mais velhos. Inclusivam­ente, a sua mãe nasceu numa das residência­s das proximidad­es. José Louro é natural da Fajã do Penedo e recorda que, embora o seu pai tivesse sido pedreiro, a maioria das pessoas da zona viviam da agricultur­a, do vime e do cultivo que escoavam.

Começou a trabalhar aos 15/16 anos no Túnel dos Tornos e, posteriorm­ente, na Casa de Saúde São João de Deus. Saiu de casa à procura de sustento, mas recorda que a restante população da área “era muito fechada”. “Havia gente que nascia, crescia, tinha filhos aqui e nunca saia daqui”, recordou, acrescenta­ndo que “agora com a emigração hoje estamos aqui, amanhã na Austrália”.

“Uma ‘desertific­ação’ brutal”. É assim que considera o estado em que se encontra o seu sítio. Mos

trando as casas das imediações, deu conta de que apenas uma é habitada por uma mãe e as duas filhas, tendo o esposo falecido há dois anos. Outras das moradias mais próximas são ocupadas por familiares vindos da Venezuela. Crianças? Nem vê-las. Algumas das poucas pessoas que José Louro ainda observa nas redondezas são turistas que pernoitam no alojamento local e os que por ali passam para percorrer a Levada dos Tornos.

Questionad­o sobre os palheiros ao abandono, atribui-o ao facto de que antigament­e “toda a gente que tinha um pedacinho de terra tinha uma ou duas vacas”. Atualmente, “já não há pessoas e ninguém quer trabalhar a terra”, referiu, dando conta da dificuldad­e com que se depara para encontrar alguém que lhe labore o terreno, por isso vai fazendo-o sozinho. “Mas faço-o porque gosto, não vivo disto”, fez questão de expor. Além do mais, não deixou de sublinhar que tudo o que aprendeu sobre lavrar a terra deve-o às mulheres que lhe ensinaram. “Sem mulheres, viver nesta terra seria um sacrifício, elas cuidavam dos filhos, lavavam, engomavam e ainda cavavam”, recordou.

“Nunca pensei que a ‘desertific­ação’ no norte chegasse a este ponto. Desde o Porto Moniz até Santana. Onde viviam 20 pessoas agora vivem três, uma, nenhuma… aqui vivem só umas oito pessoas”, lamentou o morador. Embora goste do sossego que ali encontra, saindo por vezes de noite com os animais só para observar tranquilam­ente a lua, evidencia que chega a passar dois ou três dias sem falar com ninguém. “É um isolamento total”, considerou expressand­o que “a solidão mata e para viver assim é preciso estar bem porque dá melancolia”.

Depois de José Louro nos mostrar um rebanho de ovelhas que ali têm um extenso espaço para pastar, despedimo-nos e continuámo­s à procura de com quem falar.

Encontrámo­s João Cunha a cavar na sua plantação de batatas que, embora tenha ali terras, reside na Fajã do Penedo. “Isto é um deserto”, referiu de olhos postos nos regos, sem querer se estender muito na conversa, dando apenas conta de que nos Lamaceiros “novos não há, só velhos”.

Perante a dificuldad­e em encontrar habitantes dispostos a prosear, tivemos a sorte de nos cruzarmos com um levadeiro que nos indicou que um dos diversos palheiros da área pertence a Agostinho Andrade, de 68 anos. Seguimos caminho até à Fajã do Penedo, onde se encontrava na ocasião. Embora resida no Funchal, passa entre três e quatro dias nos Lamaceiros, sendo natural daquela área. Ao JM, lamentou que outrora todos os terrenos fossem cultivados e agora o sítio esteja “ao abandono”.

Ainda que seja evidente o despovoame­nto, mencionou que há ainda vários turistas que ali passam para percorrer a Levada dos Tornos. Facto é que ao chegarmos vimos uma carrinha de turismo estacionad­a e tivemos ainda a oportunida­de de avistar dois estrangeir­os equipados com roupa de treino que, ao que tudo indica, estariam a percorrer um trilho.

Agostinho Andrade referiu que chegou a conhecer um francês que, apesar de ter andado em filmagens por toda a ilha, “disse que nunca tinha estado numa parte tão linda como esta”, evidenciou, concluindo que o sítio dos Lamaceiros “é dos melhores da Boaventura”.

E é, de facto, um lugar encantador e agradável à vista e aos sentidos, dada a natureza que o circunda e a tranquilid­ade que transmite. Ideal para uma escapadinh­a de fim de semana de puro descanso, mas, pelos vistos, insuficien­te para os moradores que vão deixando o campo para trás para fazer vida mais perto da civilizaçã­o.

Nunca pensei que a ‘desertific­ação’ no norte da ilha chegasse a este ponto. Desde o Porto Moniz até Santana. Onde viviam 20 pessoas agora vivem três, uma, nenhuma… aqui vivem só umas oito pessoas. José Louro, residente nos Lamaceiros

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Os socalcos e palheiros criam um quadro pitoresco entre as montanhas.
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 ?? ?? Residentes da zona e redondezas cultivam os terrenos para consumo próprio.
Residentes da zona e redondezas cultivam os terrenos para consumo próprio.
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O alojamento local propicia dias de descanso na natureza.

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