‘Deserto’ pintado de verde esconde-se no norte da ilha
Um cenário pitoresco confere uma beleza particular ao sítio dos Lamaceiros, na Boaventura. Apesar do panorama encantador e do sossego reconfortante, a escassez de moradores torna a localidade deserta.
É talvez um dos locais mais remotos da Região, mas certamente um dos mais agradáveis. Localizado na Boaventura, nas imediações da Fajã do Penedo, encontra-se o sítio dos Lamaceiros. Embora se trate de uma área detentora de uma beleza ímpar, não é o suficiente para que se fixem moradores, que são cada vez mais escassos por aquelas bandas.
À procura deste destino ‘perdido’, a equipa de reportagem do JM seguiu à Boaventura, percorreu curva e contracurva, passou a Igreja do Imaculado Coração de Maria, na Fajã do Penedo, e continuou a subir e subir até chegar à Estrada dos Lamaceiros.
Deparámo-nos, após a subida, com um planalto coberto de socalcos esculpidos entre os campos, bem como vários palheirinhos, muitos dos quais deixados ao abandono. Com as montanhas como pano de fundo, que na manhã de quinta-feira iam ao encontro das nuvens que pairavam no céu, entrámos num cenário verdejante onde o silêncio era tal que pouco mais se ouvia além do chilrear dos pássaros e o zumbido de alguns insetos.
Alguns dos palheiros albergavam galinhas que denotavam o teor campestre daquele sítio. Às voltas pelo local, as poucas pessoas com que nos cruzámos estavam de enxada na mão a trabalhar os terrenos que, por sinal, servem de sustento a quem os cultiva.
Seguimos em busca de residentes dispostos a nos dar uma pala
vrinha e acabámos por conhecer José Pestana Louro. Embrenhado na sua fazenda, ao nos pôr a vista em cima, prontamente assentiu que parássemos para conversar consigo. O seu cão, Pipocas, depressa nos veio receber, de cauda a abanar, e o dono sentou-se junto à entrada da casa para nos relatar a sua história e descortinar um pouco da localidade onde habita.
O residente, de 77 anos, fez saber que, quando era miúdo, ali viviam umas nove famílias compostas por cerca de 50 pessoas, desde os mais novos aos mais velhos. Inclusivamente, a sua mãe nasceu numa das residências das proximidades. José Louro é natural da Fajã do Penedo e recorda que, embora o seu pai tivesse sido pedreiro, a maioria das pessoas da zona viviam da agricultura, do vime e do cultivo que escoavam.
Começou a trabalhar aos 15/16 anos no Túnel dos Tornos e, posteriormente, na Casa de Saúde São João de Deus. Saiu de casa à procura de sustento, mas recorda que a restante população da área “era muito fechada”. “Havia gente que nascia, crescia, tinha filhos aqui e nunca saia daqui”, recordou, acrescentando que “agora com a emigração hoje estamos aqui, amanhã na Austrália”.
“Uma ‘desertificação’ brutal”. É assim que considera o estado em que se encontra o seu sítio. Mos
trando as casas das imediações, deu conta de que apenas uma é habitada por uma mãe e as duas filhas, tendo o esposo falecido há dois anos. Outras das moradias mais próximas são ocupadas por familiares vindos da Venezuela. Crianças? Nem vê-las. Algumas das poucas pessoas que José Louro ainda observa nas redondezas são turistas que pernoitam no alojamento local e os que por ali passam para percorrer a Levada dos Tornos.
Questionado sobre os palheiros ao abandono, atribui-o ao facto de que antigamente “toda a gente que tinha um pedacinho de terra tinha uma ou duas vacas”. Atualmente, “já não há pessoas e ninguém quer trabalhar a terra”, referiu, dando conta da dificuldade com que se depara para encontrar alguém que lhe labore o terreno, por isso vai fazendo-o sozinho. “Mas faço-o porque gosto, não vivo disto”, fez questão de expor. Além do mais, não deixou de sublinhar que tudo o que aprendeu sobre lavrar a terra deve-o às mulheres que lhe ensinaram. “Sem mulheres, viver nesta terra seria um sacrifício, elas cuidavam dos filhos, lavavam, engomavam e ainda cavavam”, recordou.
“Nunca pensei que a ‘desertificação’ no norte chegasse a este ponto. Desde o Porto Moniz até Santana. Onde viviam 20 pessoas agora vivem três, uma, nenhuma… aqui vivem só umas oito pessoas”, lamentou o morador. Embora goste do sossego que ali encontra, saindo por vezes de noite com os animais só para observar tranquilamente a lua, evidencia que chega a passar dois ou três dias sem falar com ninguém. “É um isolamento total”, considerou expressando que “a solidão mata e para viver assim é preciso estar bem porque dá melancolia”.
Depois de José Louro nos mostrar um rebanho de ovelhas que ali têm um extenso espaço para pastar, despedimo-nos e continuámos à procura de com quem falar.
Encontrámos João Cunha a cavar na sua plantação de batatas que, embora tenha ali terras, reside na Fajã do Penedo. “Isto é um deserto”, referiu de olhos postos nos regos, sem querer se estender muito na conversa, dando apenas conta de que nos Lamaceiros “novos não há, só velhos”.
Perante a dificuldade em encontrar habitantes dispostos a prosear, tivemos a sorte de nos cruzarmos com um levadeiro que nos indicou que um dos diversos palheiros da área pertence a Agostinho Andrade, de 68 anos. Seguimos caminho até à Fajã do Penedo, onde se encontrava na ocasião. Embora resida no Funchal, passa entre três e quatro dias nos Lamaceiros, sendo natural daquela área. Ao JM, lamentou que outrora todos os terrenos fossem cultivados e agora o sítio esteja “ao abandono”.
Ainda que seja evidente o despovoamento, mencionou que há ainda vários turistas que ali passam para percorrer a Levada dos Tornos. Facto é que ao chegarmos vimos uma carrinha de turismo estacionada e tivemos ainda a oportunidade de avistar dois estrangeiros equipados com roupa de treino que, ao que tudo indica, estariam a percorrer um trilho.
Agostinho Andrade referiu que chegou a conhecer um francês que, apesar de ter andado em filmagens por toda a ilha, “disse que nunca tinha estado numa parte tão linda como esta”, evidenciou, concluindo que o sítio dos Lamaceiros “é dos melhores da Boaventura”.
E é, de facto, um lugar encantador e agradável à vista e aos sentidos, dada a natureza que o circunda e a tranquilidade que transmite. Ideal para uma escapadinha de fim de semana de puro descanso, mas, pelos vistos, insuficiente para os moradores que vão deixando o campo para trás para fazer vida mais perto da civilização.
Nunca pensei que a ‘desertificação’ no norte da ilha chegasse a este ponto. Desde o Porto Moniz até Santana. Onde viviam 20 pessoas agora vivem três, uma, nenhuma… aqui vivem só umas oito pessoas. José Louro, residente nos Lamaceiros