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Sulcos de vida

- INÊS CARDOSO jornalista

Édifícil ficar indiferent­e perante uma oliveira secular que arde. Muito depois da passagem das chamas, por vezes até com a copa quase intacta, o tronco ferido vai sendo destruído por dentro. Lentamente, num silêncio que angustia e contrasta em absoluto com o ruído ensurdeced­or das chamas no momento em que varrem com violência um pinhal ou um eucaliptal.

A natureza dá-nos lições tremendas. Não apenas porque a capacidade de regeneraçã­o nos surpreende, mas sobretudo porque cada espécie tem o seu ritmo e uma forma particular de renascer. Ou de sentir e resistir. Há árvores que demoram décadas a crescer. Outras que se multiplica­m como pragas. As que crescem sem ninguém olhar por elas nos ambientes mais inóspitos. As que precisam de abrigo e mil e um cuidados.

A proximidad­e à terra faz-nos sentir com uma evidência incontorná­vel que tudo é feito de ciclos.

Não existem linhas contínuas, mas curvas e contracurv­as. E muitas vezes é precisamen­te após as tragédias, depois de grandes inundações ou de destrutivo­s incêndios, que a renovação reconfigur­a e fortalece. Tal como na vida há fases de sofrimento que nos marcam, mas é precisamen­te nelas que precisamos de ganhar fôlego para o que se segue.

Chegamos a dezembro e os jornais desdobram

-se em balanços e escolhas de acontecime­ntos marcantes. No ano que hoje termina, o fogo e a morte definiram-nos coletivame­nte. Milhares de pessoas sentiram uma dor tão intensa que marcou literalmen­te cada centímetro de pele e cada recanto da alma. O ano que agora começa irá demonstrar o que aprendemos. Ou não. Da mesma forma que da tragédia emergiram movimentos cívicos e uma associação a bater-se por indemnizaç­ões e por responsabi­lidades, cada um de nós deverá contribuir para que se abra um novo ciclo. Exigindo a cada momento que as promessas se cumpram. E sendo, individual­mente, parte responsáve­l de propostas e soluções.

Nas áreas ardidas veem-se inúmeros rebentos porque a vida é mesmo assim: imperativa. Mas tal como algumas espécies precisam de ajuda para recuperar, ninguém se reconstrói e cicatriza sozinho. E como as oliveiras morrem devagar, silenciosa­mente, o sofrimento mais destrutivo é quase sempre invisível e interior. Um desafio a uma maior coesão social, num país envelhecid­o e profundame­nte desequilib­rado, em que temos de cuidar mais uns dos outros.

A passagem de ano em si não é nada. Uma mera data no calendário. Mas todos os pretextos são bons para avaliarmos onde estamos e para onde queremos ir. É verdade que há muita coisa que não controlamo­s, mas a nossa parte da equação é decidir o que fazemos com o que nos surge pela frente. É exatamente por isso que as badaladas da meia-noite podem ser importante­s. Muito para lá do ruído, se quisermos olhar com olhos de ver, o avanço do calendário mostra-nos o que foi. E convida-nos a escolher o que vai ser.

Não vale a pena suspirar a cada ano que passa, com um discurso nostálgico sobre o tempo que corre. Nem lamentar os cabelos brancos e as rugas que vão surgindo quando nos olhamos ao espelho. Quanto mais velhinha for uma árvore, mais largo é o seu tronco e as histórias que ele conta. Assim são as marcas do tempo em nós. Rugas são sulcos de vida. Sulcos que a vida faz para dar profundida­de à alma.

A PASSAGEM DE ANO EM SI NÃO É NADA. UMA MERA DATA NO CALENDÁRIO. MAS TODOS OS PRETEXTOS SÃO BONS PARA AVALIARMOS ONDE ESTAMOS E PARA ONDE QUEREMOS IR.

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