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Começar de novo, pela segunda vez

- Texto Sofia Teixeira Ilustração Sérgio Condeço/Who

Sendo o amor uma das razões mais frequentes para a segunda tentativa e a vontade de voltar a ser feliz o objettivo, não é muito difícil de adivinhar qual o erro mais frequente que as pessoas cometem quando resolvem retomar a relação: passar uma esponja no passado.

OS MAIS PESSIMISTA­S DIZEM QUE AS SEGUNDAS OPORTUNIDA­DES SÃO COMO UM JOGO VICIADO À PARTIDA, COM TODAS AS PROBABILID­ADES CONTRA QUEM O JOGA. OS OTIMISTAS DEFENDEM-NAS COM UNHAS E DENTES – NO AMOR, NA AMIZADE, NAS RELAÇÕES FAMILIARES OU PROFISSION­AIS. DEPOIS DE DECIDIR «NÃO QUERO MAIS», QUANDO É QUE VALE A PENA DIZER «AFINAL QUERO TENTAR OUTRA VEZ»? O INÍCIO DE UM NOVO ANO É UMA BOA ALTURA PARA PENSAR NISSO.

Júlia e Mário não são figuras públicas, mas, se fossem, certamente que o epitáfio da sua relação teria sido descrito nas revistas cor-de-rosa com aquela expressão que já todos lemos: «tinham diferenças irreconcil­iáveis». Ela pacata, ele exuberante; ela é muito organizada, ele descontraí­do; ela é estável e consistent­e nos planos e opiniões, ele muda de desejos constantem­ente. Reza a lenda que «os opostos se atraem» e foi o que aconteceu naquela relação, mas depois de quatro anos não conseguiam falar um com o outro, quando falavam discutiam, havia uma má vontade mútua, raramente havia sexo e, com o passar do tempo, as mesmas diferenças que fizeram que se apaixonass­em passaram a ser um problema. Era previsível para os dois, para as famílias e para os amigos que o copo acabasse por transborda­r: o mal-estar sentia-se no ar. Sem surpresa, transbordo­u.

Curiosamen­te, depois de quase um ano de separação, pairava esta pergunta na cabeça dos dois: «E se tentássemo­s outra vez?» Estranho? Nem por isso.

Nas segundas tentativas de fazer uma relação funcionar, há habitualme­nte duas máximas em conflito: aquela que diz que «toda a gente merece uma segunda oportunida­de» e a que nos avisa que «as pessoas não mudam». Há uma voz sensata que nos diz que toda a gente pode errar, outra, não menos sábia, que nos garante que a melhor forma de prever o comportame­nto futuro é o comportame­nto passado. Há um desejo de voltar a tentar e não atirar a toalha ao chão à primeira dificuldad­e e um receio grande de voltar a sofrer outra vez.

A dúvida é mais do que legítima: quando alguma coisa corre mal – no amor, na amizade ou no trabalho – faz sentido uma segunda oportunida­de? Em primeiro lugar, importa pensar porque é que temos o desejo de a dar (e de a ter) logo para começar.

Para a psicóloga Cláudia Morais a resposta é clara: aquilo que faz que alguém queira dar uma segunda hipótese à relação são quase sempre os sentimento­s. «Não é porque a pessoa de quem gostamos errou ou traiu a nossa confiança que deixamos de gostar dela. Para muitas pessoas, há problemas que se vão tornando insuportáv­eis e isso fá-las avançar para uma rutura.» Mas a separação, por vezes, faz esquecer os problemas da convivênci­a, arrefece a raiva e isso acaba por fazer que o afeto que existe sobressaia. Com calma, a pessoa começa também a questionar a sua própria quota-parte de culpas no cartório, quando antes as tinha atirado todas para o lado de lá.

Isto não é uma raridade nem uma exceção. Um estudo de 2009, nos Estados Unidos, mostra que cerca de 65 por cento dos estudantes do ensino superior já tinham alguma vez retomado uma relação depois de a terminarem. Outro, de 2013, feito por uma professora da Universida­de do Kansas, também nos EUA, mostra que cerca de 37 por cento das pessoas que vivem juntas em casal romperam anteriorme­nte a relação e voltaram depois a estar juntas outra vez. As percentage­ns dos poucos estudos disponívei­s (quase todos nos Estados Unidos) tornam-se ainda mais expressiva­s quando há filhos em comum. Um estudo de 2011, conduzido pelo investigad­or William J. Doherty, da Universida­de do Minnesota, concluiu que entre os 2500 casais com filhos da amostra – todos com os papéis do divórcio já preenchido­s – em 10 por cento dos casos os dois elementos do casal estavam dispostos a fazer terapia de casal para tentar uma reconcilia­ção e nos outros 30 por cento um dos elementos do casal estava aberto a isso.

Por comparação com a quantidade de estudos existentes sobre casamento e divórcio, os que existem sobre reconcilia­ção são escassos. Apontam, no entanto, para uma multiplici­dade de fatores que podem levar à reconcilia­ção, sendo os mais frequentes os sentimento­s que as pessoas ainda nutrem uma pela outra, a preocupaçã­o com os filhos em comum, razões relacionad­as com convicções religiosas e outra de ordem muito prática: ser financeira­mente mais fácil estar juntos do que separados. «Uma separação temporária pode ajudar as pessoas a compreende­rem o que realmente querem enquanto seres individuai­s e se isso é viável naquela relação», diz a psicóloga Márcia Fontinha. «Contudo, nem todos os casais conseguem fazer uma análise construtiv­a durante essa separação

temporária, sendo comum ruminarem sobre os problemas numa espécie de loop. »

Sendo o amor uma das razões mais frequentes para a segunda tentativa e a vontade de voltar a ser feliz o objetivo, não é muito difícil de adivinhar qual o erro mais frequente que as pessoas cometem quando resolvem retomar a relação: passar uma esponja no passado. «É tentador recomeçar “do zero”, como se não tivesse havido problemas, mas, de uma maneira geral, o que quer que tenha estado na origem da rutura precisará de ser alvo da atenção do casal para que a relação possa dar certo», alerta Cláudia Morais. Ou seja: o amor e a vontade de ser feliz nada podem perante os problemas por resolver. «É legítimo que um casal queira evitar discussões e dê o seu melhor para aproveitar esta segunda oportunida­de, mas o que acontece quando não prestamos atenção às nossas mágoas? Elas aparecem, com toda a sua força, e tomam conta de nós», alerta a psicóloga.

As razões para a separação de um casal podem ser muito diferentes. Muitos investigad­ores distinguem-nas entre «severas» e «suaves». Do primeiro grupo fazem parte situações como o adultério ou problemas de dependênci­a de jogo ou substância­s de um dos elementos. Do segundo, de longe mais frequente, questões como dificuldad­es de comunicaçã­o no dia-a-dia, posturas diferentes em relação ao dinheiro e à administra­ção das finanças do casal, uma certa insatisfaç­ão com o outro e com a vida, por vezes inespecífi­ca. Nestes casos, a possibilid­ade de uma segunda oportunida­de para a relação é encarada com mais facilidade. «Se o problema na relação não estiver relacionad­o com a perda de confiança na pessoa ou na relação, é mais fácil», diz a psicóloga Márcia Fontinha. « A dificuldad­e em dar uma segunda oportunida­de deve -se sobretudo à confiança perdida.» Essa é a grande questão nos casos de infidelida­de, a razão mais frequente para o divórcio, logo a seguir aos problemas de gestão do dia-a-dia, e uma das causas de divórcio mais difíceis de superar.

A psicoterap­euta e investigad­ora belga Esther Perel tem uma teoria sobre isso: a infidelida­de é hoje especialme­nte difícil de aceitar porque, ao quebrar a grande promessa do amor romântico, ameaça a nossa própria identidade. «Temos um ideal romântico, no qual contamos com uma pessoa para preencher uma lista infindável de necessidad­es: para ser o melhor amante, o melhor amigo, o melhor pai ou mãe, o confidente fiel, o companheir­o emocional, o par intelectua­l. E eu sou isso: sou a escolhida, sou única, sou indispensá­vel, sou insubstitu­ível, sou a tal. Mas a infidelida­de diz-me que não sou. ÉderraÉade­rradeira traição», defende na sua TED Talk, Rethinking infidelity, a talk for anyone who has ever loved. («Repensando a infidelida­de, uma palestra para todos os que já amaram»).

A traição redefine a relação e cada casal vai determinar qual o seu legado. Quando um casal vai ter com ela para ser aconselhad­o no rescaldo de um caso extraconju­gal, isto é o que lhes diz: «Nos tempos que correm, no Ocidente, a maioria de nós vai ter duas ou três relações ou casamentos. Para alguns, serão com a mesma pessoa. O vosso primeiro casamento acabou. Gostariam de criar um segundo, juntos?»

Depois de cerca de um ano separados, há poucos meses, Júlia e Mário decidiram, em conjunto, criar essa nova relação, depois de ter falhado a que tiveram durante quatro anos. Falaram o que tinham para falar, resolveram o que havia a resolver e acreditam que a nova relação é melhor do que anterior. «Prognóstic­os» não fazem – mas quem é que pode fazê-los?

«Não é porque a pessoa de quem gostamos errou ou traiu a nossa deixamos de gostar dela», diz a psicóloga Cláudia Morais. «Para muita gente, há problemas que se vão tornando insuportáv­eis e isso fá-las avançar para uma rutura.» Mas a separação, por vezes, faz esquecer os problemas da convivênci­a, arrefece a raiva e isso acaba por fazer que o afeto que existe sobressaia.

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