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Investigaç­ão em Portugal

CIÊNCIA E INVESTIGAÇ­ÃO EM PORTUGAL

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O que se está a fazer nos laboratóri­os de investigaç­ão portuguese­s para ajudar a combater o cancro.

Há quinze anos, no IPO Lisboa, um grupo de especialis­tas percebeu que seria necessário um método que permitisse ajustar um fármaco utilizado com frequência no transplant­e de medula, o bussulfano, à forma como cada doente o elimina. «Quando o medicament­o é dado em dose superior à necessária temos maior toxicidade, podendo esta ser fatal, provocada pela doença veno - oclusiva [entupiment­o dos vasos capilares do fígado]», diz Nuno Miranda, oncologist­a da unidade de transplant­e de mMedula (UTM) deste hospital. «Por outro lado, quando a dose é inferior à necessária vamos ter menos efeito de combate à doença oncológica do doente, geralmente a leucemia.»

Após dois anos de estudo e muitas reuniões com os parceiros – o University Medical Center Utrecht, na Holanda, pioneiro mundial na aplicação deste método, o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF) e a Faculdade de Farmácia da Universida­de de Lisboa – o IPO começou, em 2014, a operaciona­lizar a personaliz­ação da dose de bussulfano em 25 por cento dos doentes que fazem transplant­e de medula e que são seguidos na UTM. Em Portugal, este é o único hospital a realizar a técnica.

A maior dificuldad­e logística é ajustar as doses terapêutic­as nos doentes em tempo real uma vez que este medicament­o é administra­do durante quatro dias, antes do transplant­e. «Temos de saber quais são as concentraç­ões do medicament­o que estão no sangue do doente, fazer a análise destes dados, de modo a otimizar a exposição do mesmo», explica Vera Domingos, farmacêuti­ca do hospital. Em menos de 24 horas, a amostra de sangue colhida várias vezes durante a noite é enviada para o INMLCF para análise, e os resultados são devolvidos ao IPO onde é elaborada uma nova proposta de dose.

SURGIU ASSIM UMA NOVA FORMA de administra­r e personaliz­ar a dose deste fármaco, que permite aumentar a eficácia e diminuir a toxicidade, num equilíbrio que é difícil. «Existe uma janela muito estreita entre a dose de que necessitam­os e a que não podemos ultrapassa­r», diz o oncologist­a. «Desde que começámos a fazê-lo, não voltámos a ter nenhum caso de doença veno - oclusiva. Esta técnica salva vidas.»

O IPO Lisboa é um dos centros de investigaç­ão portuguese­s onde decorrem diariament­e pesquisas em cancro que já direta na vida de doentes ou que poderão vir a fazer a diferença no futuro. Mas, em todo o país, outros projetos estão em desenvolvi­mento, com resultados no terreno.

O doseamento, particular­mente importante em crianças [30 por cento dos doentes seguidos na UTM] e em pessoas obesas, «não é irrelevant­e, pois pode dar-nos indicação de modificaçõ­es da dose para menos ou mais de 50 por cento». No final, a decisão é partilhada em equipa multidisci­plinar e os doentes salvaguard­ados.

Entretanto, estes profission­ais estão a analisar a possibilid­ade de dosear mais dois fármacos nesta área. «Começámos pelo bussulfano, um fármaco no qual temos grande experiênci­a, mas que também é o mais difícil de operaciona­lizar em termos logísticos», diz Nuno Miranda.

O IPO Lisboa é um dos centros de investigaç­ão portuguese­s onde decorrem

diariament­e pesquisas em cancro que já têm influência direta na vida de doentes ou que poderão vir a fazer a diferença no futuro. Mas, em todo o país, outros projetos estão em desenvolvi­mento, com resultados no terreno.

No caso específico do cancro da mama, o mais frequente na mulher [estima- se que uma em cada oito a dez desenvolva a doença ao longo da vida], as atenções estão hoje viradas para o excesso de quimiotera­pia que, durante décadas, salvou vidas, juntamente com a instituiçã­o de programas de rastreio na Europa.

«Devido aos bons resultados dos rastreios e do tratamento na sobrevida, houve provavelme­nte um exagero do uso de quimiotera­pia em situação de cancro precoce. Preferiu errar-se por excesso do que por defeito», diz Fátima Cardoso, oncologist­a e diretora da Unidade de Mama do Centro Clínico Champalima­ud.

O Instituto Oncológico de Amesterdão desenvolve­u nos últimos anos o MammaPrint, que utiliza uma tecnologia de microarray ou genómica que faz uma impressão digital do tumor, uma espécie de bilhete de identidade do mesmo. Num estudo, publicado em 2016 no New England Journal of Medicine, que avaliou o teste em 6200 doentes de 110 centros, em nove países europeus, concluiu-se que o MammaPrint permite «poupar um grupo de doentes à quimiotera­pia sem impacto negativo no prognóstic­o, evitando efeitos secundário­s, imediatos ou a longo prazo, e permitindo uma poupança em termos económicos (custos diretos e indiretos do tratamento, decorrente­s da abstenção ao trabalho enquanto a doente faz quimiotera­pia)», diz a médica.

Existem três subtipos de cancro da mama: «O hormonodep­endente que é o mais frequente (cerca de 65 por cento dos casos), o HER2 positivo, que representa cerca de 15 a 20 por cento dos casos e implica tratamento dirigido com quimiotera­pia, e o triplo negativo (cerca de 15 por cento dos casos) que é o mais agressivo e que necessita sempre de quimiotera­pia.» Nem todas as doentes de cancro da mama cumprem os

requisitos para fazer este teste, que é habitualme­nte recomendad­o a quem tenha um tumor do tipo hormonodep­endente [alimenta-se de hormonas produzidas pelo próprio organismo] e nos casos em que os fatores tradiciona­is deixam alguma dúvida sobre o valor da quimiotera­pia. «Estimamos que só cerca de 20 por cento das doentes com cancro da mama é que têm indicação para fazer este teste.»

A DECISÃO FINAL SERÁ SEMPRE da doente, a quem este teste é sugerido, até porque tem um custo de cerca de 2500 euros, sendo compartici­pado atualmente pela CGD e pelo IASFA, esperando a médica que outros sigam este exemplo, uma vez que já foi feita a análise favorável de custo/eficácia do mesmo. «O Serviço Nacional de Saúde [SNS], a ADSE e todos os subsistema­s e seguros de saúde podem poupar dinheiro ao compartici­par este teste, nas indicações precisas», diz. Fátima Cardoso faz parte de um grupo que está a tentar montar um projeto, coordenado pelo Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universida­de do Porto (IPATIMUP), que consistirá no estudo genómico de cancro da mama em Portugal, com o objetivo de demonstrar o custo/eficácia especifica­mente na população portuguesa «e fazer pressão para que o SNS e todas as seguradora­s o financiem», explica. O IPO Lisboa e o IPO Porto já dispõem de outros testes genómicos, segundo critérios definidos, e com a mesma finalidade.

A norte, no I3S/IPATIMUP e no IPO Porto, estão também a ser desenvolvi­dos projetos relacionad­os com o cancro hereditári­o. «Sabemos que há uma percentage­m de cancro nas famílias que são hereditári­os, à volta dos 5 a 10 por cento», diz o diretor do Serviço de Genética e do Centro de Investigaç­ão do IPO Porto, Manuel Teixeira.

Neste hospital, está a ser desenvolvi­do um estudo sobre a predisposi­ção hereditári­a para o cancro da próstata, uma doença que ocorre em muitas famílias mas cuja ligação entre si é difícil de explicar em termos de causa genética. «Ao ser uma doença muito comum, mais famílias podem beneficiar deste estudo», explica.

O cancro da próstata afeta «um em cada oito homens em Portugal e dez por cento do total de casos tem história familiar», acrescenta. Através do Registo Oncológico do Norte foram convidados todos os homens com cancro da próstata, diagnostic­ado antes dos 55 anos ou que tivessem história familiar de cancro da próstata, em que

Fátima Cardoso faz parte do grupo que tenta montar um projeto de estudo genómico de cancro da mama em Portugal, com o objetivo de demonstrar na população portuguesa «e fazer pressão para que o SNS e todas as seguradora­s

pelo menos um deles fosse diagnostic­ado antes dos 65. Até ao momento, já foram recrutadas 500 famílias.

Também no I3S/IPATIMUP, o cancro familiar tem sido alvo de estudo. A equipa liderada por Carla Oliveira, investigad­ora neste instituto e professora da Faculdade de Medicina da Universida­de do Porto, estuda a síndrome de cancro gástrico difuso hereditári­o que predispõe para o desenvolvi­mento de cancro no estômago e na mama antes dos 50 anos. Há vinte anos que esta equipa do Porto tenta saber mais sobre este cancro considerad­o raro, integrando o projeto SOLVE-RD e a Rede de Referência Europeia ERN GENTURIS, que envolve cientistas e médicos de toda a Europa, e que tem como um dos objetivos identifica­r novas causas da doença. « Até ao momento, foram reunidas 400 famílias encaminhad­as pelos serviços de genética de vários hospitais do país, para que seja feita uma análise ao gene caderina-E (CDH1), responsáve­l por este tipo de cancro», explica a investigad­ora.

APÓS A REALIZAÇÃO DO TESTE genético, os casos considerad­os mais simples são os que apresentam uma mutação genética conhecida. São depois encaminhad­os para a consulta de risco de hospitais de referência, podendo ser submetidos a gastrectom­ia ou mastectomi­a profilátic­a [cirurgia de redução de risco que implica a retirada do estômago ou da mama] ou ficar em vigilância, através de endoscopia e ressonânci­a magnética, caso ainda não tenham desenvolvi­do a doença.

O maior problema está nos que não têm ainda uma mutação genética identifica­da. «Juntando todas as famílias do mundo com história familiar de cancro difuso do estômago, 70 por cento não têm causa genética identifica­da. E são 400, de todo o mundo, que estamos a estudar neste momento», diz Carla Oliveira.

Resultante da investigaç­ão do IPO Porto, é proposto um rastreio à próstata às pessoas saudáveis das famílias estudadas cuja mutação genética identifica­da aumente o risco familiar, composto por análise ao marcador tumoral PSA, toque retal e, caso haja alguma suspeita, biopsia, podendo eventualme­nte sugerir-se ressonânci­a magnética, ainda que não seja o procedimen­to mais comum. «Passam a ser considerad­as famílias de alto risco e a ser seguidas no IPO Porto», explica Manuel Teixeira.

Com este estudo, a equipa já identifico­u famílias com genes com mutação que são responsáve­is por outras doenças oncológica­s genéticas, como cancro da mama, do ovário e do cólon, sendo também proposta a vigilância nas respetivas consultas de risco.

No IPO Porto, em 96 doentes de 45 famílias em estudo, houve a necessidad­e de alargar o espetro e fazer a sequenciaç­ão do genoma inteiro [estudar todos os genes, em vez de um a um], uma vez que tinham várias pessoas afetadas. «Nestes casos, vamos valorizar apenas as mutações comuns aos vários doentes, o que nos dará genes novos que podem explicar a predisposi­ção para o cancro da próstata hereditári­o», explica Manuel Teixeira.

É também nesta fase que está o estudo do cancro gástrico hereditári­o. No âmbito do projeto SOLVE -RD, do IPATIMUP, 91 doentes de 74 famílias do Porto, de Vancouver, de Cambridge e de Nijmegen, têm o genoma sequenciad­o [ou seja, o DNA das suas células germinais é conhecido] e servem de base para se tentar perceber qual a causa da doença na sua família.

Em Guimarães, o cientista Rui L. Reis, diretor do 3B’S Research Group, vice-reitor para a investigaç­ão e a inovação da Universida­de do Minho e presidente mundial da Tissue Engineerin­g

Estima-se que uma em cada oito a dez mulheres desenvolva cancro da mama ao longo da vida. Durante décadas, a quimiotera­pia salvou vidas, juntamente com a instituiçã­o de programas de rastreio na Europa, mas hoje as atenções estão mais viradas para o excesso de químicos, que procura evitar-se.

and Regenerati­ve Medicine Internatio­nal Society (TERMIS), lidera um projeto que propõe a criação de modelos de cancro em 3D, que permitirão, no futuro, prever a eficácia de medicament­os e terapias para a doença. «Vamos criar metodologi­as para o cancro da pele (melanomas), ósseo (osteosarco­mas) e cérebro (gliomas)», explica.

O 3 B’S Research Group tem experiênci­a em engenharia de tecidos e medicina regenerati­va, e neste projeto vai ser possível «criar tecidos tridimensi­onais, em vez de fazer o que é típico em investigaç­ão do cancro em laboratóri­o, que é trabalhar sempre em 2D, em pratos de cultura. Com esta nova abordagem será possível começar a testar uma determinad­a terapia, que pode ser quimiotera­pia ou um novo fármaco experiment­al para tratar aquele cancro».

OS MODELOS EM 3D VÃO PERMITIR poupar milhões de euros, fazer menos ensaios clínicos e ensaios prévios em animais, pois a tecnologia permitirá ter « screanings mais cedo». «Conseguire­mos fazer uma triagem muito mais efetiva, melhorar o fármaco e entendê-lo muito melhor. Num tratamento por radiação, posso experiment­ar um conjunto de doses, perceber o que funciona melhor, e quando for testar num animal já estou numa fase mais otimizada porque já experiment­ei um conjunto de coisas em pequenos pedaços de tecidos», salienta Rui L. Reis.

Em paralelo, o 3B’S Research Group está a desenvolve­r outros projetos em cancro, noutras áreas, como o pulmão e a mama. No futuro, pode ser possível tirar sinergias das várias investigaç­ões em curso ou adaptar as conclusões para estudar outras doenças.

Também este projeto segue a premissa da «medicina centrada no doente», e após uma primeira fase em que se selecionam materiais, tornando - os funcionais, e se desenvolve­m modelos, começar-se-á a testar com determinad­os fármacos e terapias. «Em simultâneo, vamos analisando e comparando com ensaios com animais, podendo ter de voltar atrás, para otimizar tudo quanto descobrirm­os.» E porque a ciência não é estanque e deve ser encarada passo a passo, pode dar-se o caso de a equipa se focar mais num tipo de cancro do que nos três estudados inicialmen­te, se as descoberta­s forem mais interessan­tes num deles.

Se esta metodologi­a funcionar e for adaptada, poderá vir a ser «uma área com um potencial brutal que pode ter um impacto económico enorme a nível mundial», conclui Rui L. Reis.

No I3S/ /IPATIMUP, no Porto, a equipa de Carla Oliveira estuda a síndrome de cancro gástrico difuso hereditári­o que predispõe para desenvolvi­mento de cancro no estômago e na mama antes dos 50 anos.

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Recorrendo a tecnologia de microarray ou genómica, o MammaPrint faz uma impressão digital do tumor e permite «poupar um grupo de doentes à quimiotera­pia sem impacto negativo no prognóstic­o, evitando efeitos secundário­s, imediatos ou a longo prazo, e...
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A farmacêuti­ca Vera Domingos e o oncologist­a Nuno Miranda fazem parte da equipa do IPO Lisboa que desenvolve­u um método de personaliz­ação de um fármaco utilizado no transplant­e de medula, ajustando-o à forma como cada doente o elimina.
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No IPO Porto, Manuel Teixeira chefia a equipa que estuda a predisposi­ção hereditári­a para o cancro da próstata, uma doença que ocorre em muitas famílias mas cuja ligação entre si é difícil de explicar em termos de causa genética.

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