Jornal de Notícias - Notícias Magazine

Salada mista

- texto e fotografia ANA BACALHAU

Se sou o que como, haverá um pasto verdejante dentro de mim. O meu interior é rural, bucólico e cheio de pastorícia. As ovelhas que pastam cá dentro andam livres pelas minhas veias, onde não corre sangue, mas sumo detox, cheio de couve kale e sementes de chia, boas para as ovelhas crescerem gordinhas e saudáveis.

O meu cérebroéum­sup era limentoàes pera de ser colhido e transforma­do em granola. O fígado é uma tosta de abacate e os rins um ovo escalfado. Toda eu sou um brunch saudável, o corpo, uma pêra rocha meio verde com uns fios de algas carregados de iodo, por cabelos.

Sou um pomar carregado de todos os frutos, especialme­nte, os frutos de verão. Ameixas, cerejas, morangos e pêssegos. Átomos da minha existência, doces esferas que me ligam à terra.

Sim, sou dessas. Nem sempre fui. Birras sempre que não era carne, em miúda. Legumes e peixe davam choradeira certa. Até que um dia, depois de me lambuzar anos a fio, acabei por me fartar dos prazeres da carne e passei a concentrar-me nos prazeres de não comer carne.

Não evangelizo ninguém, acho parvo que se tente mudar algo tão pessoal e intransmis­sível como os apetites e os prazeres culinários de alguém, menos ainda recorrendo à sobranceri­a moral e à táctica da culpabiliz­ação.

Como dizia sabiamente a minha avó, com a devida entoação irónico-irada: «Não gostas, não comes.» Cada apetite sabe de si e o meu sabe que quer ser verde, da cor dos pastos e dos pomares.

Fico feliz e faz-me feliz uma mesa recheada de todas as cores com que a terra pinta a sua carne. Os legumes são a carne da terra e eu a sua predadora.

Quem nunca comeu feijão-verde cru acabado de colher não sabe o prazer que dá trincar a sua carne estaladiça e provar aquele sabor meio apimentado. Ou uma maçã ácida e doce, ao mesmo tempo, que, a cada dentada, nos vai arrepanhan­do as bochechas e arrebatand­o o palato.

O doce carameliza­do de uma cebola que se enrolou com o azeite num refogado demorado e que nos confunde os sentidos, que tentam perceber se será sobremesa ou prato principal.

Se sou o que como, tenho raízes fortes e profundas, como as árvores de fruto. Não sou melhor nem pior por isso. Apenas feliz. Porque é assim que a comida, como a vida, nos devia deixar: felizes e saciados.

* Cantora

 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal