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«Mãe, agora

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Aqui há um ano, a Rita, então com 9, entra no carro e desata num pranto. Aflita, tentei perceber o que se passava. O choro impedia-a de falar, até que um soluçado: «Mãe, tive um recado na caderneta.» Eu: «Um recado na caderneta? Isso não é bom, mas também não é razão para estares a chorar dessa maneira.» Silêncio, interrompi­do a espaços por novos soluçares. Não conseguind­o que me explicasse o motivo do recado, fiz-me mais dura: «Olha, não penses que é por chorares que a mãe vai ter pena de ti e que não vais ficar de castigo. Fazeres-te de vítima não é uma boa estratégia.» Ela, olhar incrédulo: «Não estás a perceber nada. Não estou a fazer-me de vítima.» Eu: «Então, não percebo o porquê dessa choradeira toda.» Ela, inconsoláv­el: «É que agora, mãe, já não é só um, são dois filhos a trazer recados na caderneta.» Touché. Difícil controlar o sorriso derretido que aquela consciênci­a e doçura me provocaram.

Os dois sempre foram bons alunos, mas enquanto a caderneta da Rita estava imaculada até àquele recado, no quarto ano, à do João faltavam folhas para a intensa correspond­ência entre escola e pais. «Não é que seja mal-educado, mas fala muito, não para quieto, faz muitas perguntas, intervém de forma desadequad­a, perturba as aulas, o aproveitam­ento e os colegas.» Não sei quantas vezes ouvi e li estas queixas juntas ou em separado. Queixas que valeram ao João, ao longo dos anos ( já está no oitavo), meses de castigo, ora sem televisão, ora sem PlayStatio­n, ora sem telemóvel (desde que o tem). Lá em casa, os professore­s têm sempre razão, mesmo quando, no fundo, penso que é sobre-humano o que estamos a pedir aos miúdos.

Noventa minutos de aula, intercalad­os por intervalos de dez? Turmas de trinta miúdos? Matéria as mais das vezes debitada para ser fixada e reproduzid­a meses mais tarde num teste de avalia- ção? Na entrevista que fiz na semana passada ao pedopsiqua­tra Pedro Strecht, ele chamava a atenção para que ao fim de meia hora a capacidade de atenção, memorizaçã­o e até de desempenho começa a diminuir nas crianças e jovens. E criticava o facto de a escola portuguesa não pedir muito mais do que atenção, memorizaçã­o e sobretudo reprodução de informação.

Num artigo que li recentemen­te, dava-se conta de que a arquitetur­a estava a mudar nas escolas finlandesa­s, paredes «deitadas abaixo» para acompanhar um sistema que valoriza a liberdade, o pensamento crítico, a criativida­de e o conhecimen­to e há muito que dá frutos e é tido como um dos melhores do mundo. Há cerca de seis anos, pude verificá-lo numa reportagem que realizei numa escola finlandesa. Turmas pequenas, ausência de testes ou exames, menor tempo de aulas, intervalos maiores em ambientes mais acolhedore­s, respeito, tanto pelos professore­s, que são uma das profissões mais valorizada­s na Finlândia, como pelos alunos, que são sujeito e não apenas objeto do sistema educativo.

Noutro artigo que li há pouco tempo, várias investigaç­ões na área das neurociênc­ias mostravam que o cérebro aprende melhor quando sujeito a estímulos diversos, aconselhan­do-se metodologi­as de ensino menos expositiva­s e mais abertas à participaç­ão dos alunos, aos trabalhos de grupo e de campo e a recursos que usem imagem, vídeo e gráficos interativo­s.

Não sei se já perguntei isto antes, devo ter perguntado, o meu filho perguntado­r tem a quem sair (e não é só à mãe), mas não estará na altura de voltar a pensar, a sério, na escola que queremos? E fazer tudo de novo? Talvez diminuísse o número de recados nas cadernetas das crianças portuguesa­s. Talvez.

NÃO ESTARÁ NA ALTURA DE REPENSAR A ESCOLA QUE QUEREMOS? TALVEZ DIMINUÍSSE O NÚMERO DE RECADOS NAS CADERNETAS.

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