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200 páginas para o Infarmed mudar de casa
A mudança será viável? Quais os custos da transferência de Lisboa para o Porto? Quantos funcionários terão de fazer as malas? Que edifícios públicos serão adequados para albergar o Infarmed? Tudo isto estará no relatório que o grupo de trabalho vai entregar até 30 de junho. O documento é consultivo, não vinculativo. A última palavra pertence ao ministro.
Passaram-se 216 dias desde que o ministro da Saúde anunciou a deslocalização de Lisboa para o Porto do Infarmed - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde. Faltarão 190 dias para que essa deslocalização se materialize. Adalberto Campos Fernandes já disse que a transferência começaria no início de 2019 e, nas suas contas, 70% dos recursos estarão no Porto em dois a três anos. E estamos a poucos dias do relatório do grupo de trabalho, criado em dezembro do ano passado para analisar a viabilidade dessa deslocalização, chegar às mãos do ministro. Na tutela, impera o silêncio. O ministro não fala até ler e digerir o documento.
O anúncio governamental aconteceu um dia depois do país saber que o Porto não iria receber a Agência Europeia do Medicamento (EMA, sigla em inglês), que acabou por mudar-se de Londres para Amesterdão. A transferência do Infarmed para 300 quilómetros a norte foi uma surpresa geral. A direção do Infarmed e os seus funcionários tiveram conhecimento da mudança por uma notícia avançada pelo JN que o ministro da Saúde não demorou a confirmar. Campos Fernandes desdobrou-se em explicações, garantiu que se tratava de uma “decisão política” e ponderada ao longo do tempo, que os funcionários seriam parte ativa na resolução, que tudo seria feito para que os melhores profissionais se mantivessem e que não se tratava de um prémio de compensação pela não vinda da EMA, mas sim pelo reconhecimento das competências do Norte no setor do medicamento. Quanto aos custos nem uma palavra, e até hoje nunca foi divulgado um valor. Sabe-se que se a deslocalização se concretizar, a nova sede ficará num edifício do Estado - o Palácio dos CTT na Avenida dos Aliados, o Palácio Atlântico na Praça D. João I e o antigo quartel militar na Rua do Ouro são espaços que têm vindo à tona quando o assunto é abordado. Lisboa será transformado num polo regional, desconhecendo-se, em concreto, o que ficará na capital.
Depois do anúncio inesperado, o ministro chegou a admitir que a comunicação não tinha sido feita da melhor maneira, mas deixou claro que essa transferência seguiria em frente. E só depois é que constituiu um grupo de trabalho para analisar ao pormenor todos os pontos dessa mudança. O re- latório será entregue até 30 de junho. “Vamos cumprir a data que está estipulada”, promete à “Notícias Magazine” Henrique Luz Rodrigues, coordenador do grupo de trabalho e o anterior presidente do Infarmed. O documento que será entregue ao ministro terá mais de 100 páginas, menos de 200. Um parecer exaustivo que dirá se é ou não possível a deslocalização, apresentará a relação custo-benefício, os riscos e vantagens, o impacto nos trabalhadores. O relatório não é vinculativo, apenas consultivo. “Não temos nada a ver com a decisão política, nós temos de ver as condições técnicas”, refere o responsável. “Temos um grupo com pessoas muito competentes e muito empenhadas e temos tido múltiplos recursos”, diz. As reuniões plenárias do grupo de especialistas foram feitas em várias cidades do país - Lisboa, Coimbra, Covilhã, Faro, Braga e Porto. E o coordenador não abre o jogo. Pretende-se unanimidade neste relatório que se quer objetivo e rigoroso. Luz Rodrigues salienta que neste trabalho foram ouvidos vários ministérios, a direção e a comissão de trabalhadores do Infarmed, os seus clientes e as ordens ligadas ao setor da saúde. Depois de tempos conturbados, em que haveria um “reiterado incumprimento” na colaboração solicitada ao Infarmed, com Luz Rodrigues a ponderar a sua demissão, o processo decorre sem percalços. “Houve, de facto, uma falta de comunicação do Infarmed a determinada altura”, comenta.
Primeiro a decisão, depois os estudos
Segunda-feira passada, dia em que o grupo de trabalho se reuniu no Porto para a última sessão plenária e redação do relatório, o Infarmed apresentou o resultado da sua atividade de 2017. A presidente do Infarmed, a pediatra Maria do Céu Machado, não fala do assunto neste momento. Mas, desde novembro, já deixou vários avisos e garantiu, na comissão parlamentar de Saúde, que o Infarmed não criou obstáculos ao grupo de peritos e respondeu a todos os pedidos de informação no prazo máximo de uma semana. E foram 59 pedidos entre dezembro de 2017 e maio deste ano. Maria do Céu Machado admitiu algum desconforto com a entrada em cena de uma entidade externa – um consórcio constituído pela Porto Business School,
o Instituto Superior Técnico e o Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores - para avaliar a atividade do Infarmed para o relatório do grupo de peritos. “Alguma má-fé acabou por passar para o nosso lado, mas do nos-
so lado não havia má-fé”, frisou aos deputados.
A presidente do Infarmed tem alertado que a deslocalização levará à perda de milhões de processos e deixou bem claro que o anúncio causou sobressalto na casa, com os funcionários sem saberem como será o futuro, garantindo, no entanto, que a atividade não estava a ser afetada, mas adiantando que havia mais pedidos de funcionários para sair. “Podemos, por diminuir a atividade, prejudicar a saúde dos portugueses, o que tem consequências com o aumento de internamentos, doenças, despesas indiretas que não podemos contabilizar”, acrescentou. O Porto não é a questão. “O problema que se coloca aqui é mexer numa estrutura que é pesada, com muita pressão interna e externa, muitas atividades e parceiros”, sublinhou. Na introdução do relatório da atividade do Infarmed, texto assinado por si e mais dois elementos da direção, há duas frases que podem ser lidas nas entrelinhas: “2018/2019 serão seguramente anos-charneira na organização interna e externa. A competência e o empenho de todos os que trabalham no Infarmed assim o exigem.”
A instabilidade dentro das quatro paredes do regulador do medicamento surgiu depois do anúncio do ministro. Rui Spínola, engenheiro informático, responsável pela segurança de informação do Infarmed, com 18 anos de casa, é o porta-voz da Comissão de Trabalhadores e tem insistido no que pode acontecer se a transferência se concretizar: perda de quadros técnicos altamente especializados, instabilidade nas equipas, perturbação nas atividades relacionadas com a indústria farmacêutica, prejuízos na articulação com instituições públicas e privadas, perda de influência no contexto europeu e de reconhecimento internacional.
“Qual é o problema que o Infarmed tem, neste momento, que fica resolvido com a sua deslocalização?” Esta é a pergunta que fez ao ministro e ao grupo de trabalho e à qual não teve resposta. Spínola lembra que a mudança não está no plano estratégico do Infarmed. E tem mais questões: “Não existe nada previsto na lei que obrigue qualquer funcionário público a deslocar-se mais de 60 quilómetros. O Governo criou um problema para o qual não tem solução. Vai ser o primeiro despedimento coletivo de funcionários públicos? O que vai acontecer?” A colaboração dos trabalhadores é total. “Por muitos estudos que façam, ninguém conhece melhor o Infarmed do que nós. O principal ativo do Infarmed são os trabalhadores. Contem connosco para fazermos parte da solução, não nos coloquem neste problema que não foi criado, nem alimentado, por nós”, afirma à NM. E rejeita uma leitura que tem sido feita: “Colocar descentralização e deslocalização na mesma frase não faz sentido. Das duas uma: ou não sabem o que é descentralização ou não sabem o que é deslocalização. O Infarmed é uma instituição de âmbito nacional.” De qualquer forma, a localização geográfica não é a questão. “O Porto não precisa de esmolas.”
Os presidentes das câmaras do Porto e de Lisboa aguardam pelo relatório e, neste momento, não comentam o assunto. Já o fizeram. Rui Moreira aplaudiu. “Acreditamos que isto pode ser muito significativo para a economia do Porto, para a economia da região, também para a indústria”, referiu. “Queria agradecer ao Governo por tomar esta decisão e dar nota de que nós, quando não estamos satisfeitos com modelos centralistas, também ficamos satisfeitos e agradecemos quando se tomam medidas desta natureza.”O autarca do Porto não entenderá se a decisão for revertida. Fernando Medina adiantou que o ministério acautelaria o bom funcionamento do Infarmed, seja qual for a decisão. “Lisboa não pode ser contra medidas de desconcentração ou descentralização, pois temos defendido essas políticas a bem da coesão do país e da melhoria da eficácia dos serviços.” Manuel Pizarro, vereador do PS na Câmara do Porto e ex-secretário da Saúde, acredita na descentralização “num país viciado em centralismos”. “À exceção da Entidade Reguladora da Saúde, todas as instituições do âmbito da saúde estão em Lisboa. Não haverá algo de estranho nisto?”, questiona. A deslocalização do Infarmed, em seu entender, tem de ser feita sem dramatismo, com prudência e respeito pelos funcionários e pela sua condição profissional. Pizarro espera uma solução equilibrada e que “não deite ao lixo uma parte que o Infarmed tem em Lisboa”. E deixa uma consideração: “A distância que leva um cidadão a chegar do Porto a Lisboa é a mesma que ir de Lisboa ao Porto. Mas, pelos vistos, só no Porto é que sabemos isso.”
Intenção ou decisão?
A bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco, não concorda com a mudança, que lhe soa a compensação por a EMA não ter ido para o
Porto. “Não faz sentido do ponto de vista de gestão de recursos e de contenção de custos. Não vale a pena desestruturar equipas e criar instabilidade nas pessoas. Não vemos interesse público para esta mudança”, diz à NM. A Ordem dos Farmacêuticos não fala do assunto neste momento. A bastonária, Ana Paula Martins, que nunca se mostrou contra ou a favor da deslocalização, tem vindo a colocar a tónica na capacidade de regulação do mercado e na competitividade internacional do setor farmacêutico português, ao mesmo tempo que lembra a capacidade instalada do Infarmed, defendendo que “qualquer processo de relocalização deve prever uma abordagem específica junto dos profissionais que integram o quadro de pessoal”. A Ordem dos Médicos não tem uma posição oficial mas António Araújo, presidente do Conselho Regional do Norte, tem uma opinião vincada: “É uma boa iniciativa da tutela no sentido de descentralizar os organismos do Estado. O Porto tem todas as condições para receber o Infarmed.” E apresenta exemplos. É uma “cidade de cultura e de saber”, tem duas das principais faculdades de Medicina do país, tem laboratórios de referência na área de investigação médica e científica, como o i3S – Instituto de Investigação e Inovação em Saúde e o IPATIMUP – Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto. E no Norte está também indústria farmacêutica de elevada importância como a Bial, instalada na Trofa. “Como qualquer empresa, pode ter a sede no Porto e manter os laboratórios em Lisboa”, reitera, sublinhando que é preciso “pesar a questão dos funcionários que têm a sua vida em Lisboa”. António Araújo espera que a transferência seja mesmo para avançar. “O ministério tem-nos habituado a fazer promessas que não chega a cumprir.”
O PSD considera que o assunto não tem sido bem gerido desde o início. Para Miguel Santos, deputado do PSD eleito pelo Porto, o processo foi feito ao contrário. Primeiro, anunciou-se a decisão, depois avançou-se com os estudos. Devia ser o inverso, na sua opinião. “É o que manda o bom senso e a boa gestão da coisa pública”, defende à NM. “Estamos a aguardar que esse relatório surja, não sendo certo que o Governo tome logo uma decisão. O Governo tem procurado dilatar prazos. Mesmo que seja uma não-decisão também é uma decisão”, comenta. A deslocalização será viável? “Tudo é viável desde que haja vontade política e que seja autêntica, mas não me parece que seja autêntica, daí os avanços e recuos.”
Renato Sampaio, deputado do PS e líder da Concelhia do Porto, concorda com a deslocalização. “Tudo o que seja deslocalizar grandes serviços para
o Porto é positivo.” E acredita que o Governo “encontrará a melhor solução para satisfazer os interesses dos trabalhadores”.
Já o BE vê perigos nesta mudança. “É uma deslocalização mas, na verdade, é o princípio do fim do Infarmed”, refere à NM Moisés Ferreira, deputado do Bloco e membro da comissão de Saúde. “O risco de deslocalizar o Infarmed é muito grande porque os trabalhadores não aceitam, e estamos a falar de profissionais altamente qualificados, não só do ponto de vista académico, como de experiência de regulação, legislativa. Não são trabalhadores substituíveis.” A própria imagem do regulador do medicamento, como instituição de referência na Europa, é afetada, e a “turbulência criada é, por si só, um risco”.
Moisés Ferreira fala de uma “proposta inusitada”, de uma “decisão inconsequente” e “sem vantagens para o país e para a política pública do medicamento”. E sublinha: “Desde novembro que o ministro não consegue apresentar uma única justificação do que o Infarmed ganha com isso. Esta obstinação do ministro já devia ter sido largada.”
O CDS pediu explicações ao ministro. A deputada Isabel Galriça Neto, na comissão de saúde, considerou o anúncio “precipitado”. “Não foi sustentado em qualquer tipo de evidência, como devem ser as boas decisões políticas. Um anúncio desintegrado de qualquer estratégia”, comentou. E acrescentou: “O Porto não merece, nem precisa, que o processo seja gerido desta forma provinciana e com esta ligeireza.”
O PCP não se tem manifestado nem a favor nem contra. Insistiu no Parlamento para que os trabalhadores fossem incluídos no grupo de trabalho, não só por conhecerem a instituição mas também por serem os principais visados, o que não aconteceu, e agora aguarda pelo relatório para analisar os argumentos. “É prematuro tomar posição com base em informações que não temos”, refere Carla Cruz, deputada do PCP. “Estas decisões não se compadecem com precipitações que, à data, classificamos como uma decisão intempestiva do ministro e do Governo”, diz, lembrando que “estas deslocalizações não servem os propósitos da regionalização”.●m