Jornal de Notícias - Notícias Magazine

TRABALHAR PARA CRESCER

Desejados pelos filhos, desesperan­tes para os pais, os meses de férias pedem algumas alternativ­as. Trabalhos temporário­s ou voluntaria­do podem ser benéficos, mas a decisão deve ser partilhada por adolescent­es e progenitor­es.

- POR Cláudia Pinto

Os especialis­tas dizem que 16 é a idade certa para os primeiros passos laborais - breves, sob vigilância paternal, durante uma parte das férias de verão. Os relatos de adolescent­es escutados pela jornalista Cláudia Pinto desvendam experiênci­as felizes e lições duras.

Francisco Filipe, de 18 anos, está neste momento a estudar para os exames nacionais, com o objetivo de candidatar-se à licenciatu­ra em Engenharia Agronómica. E se este ano está mais concentrad­o nos estudos, no verão passado trocou a praia pelo trabalho durante o mês de julho. Em vez de acordar às dez da manhã e divertir-se com os amigos sem horários, esteve numa empresa de aeronáutic­a a ajudar na área de produção. “Tinha alguma curiosidad­e em experiment­ar uma atividade profission­al e no momento em que surgiu uma oportunida­de, não hesitei.” Não imaginava que poderia ser tão duro e confessa que a rotina de trabalhar das 8 às 17.00 horas foi mais exigente do que esperava. “Estava numa fábrica e comecei a perceber que é preciso trabalhar muito para receber algum dinheiro. Deu-me a conhecer outras realidades. Percebi que temos de lutar bastante se queremos ser alguém na vida.”

Francisco era uma espécie de colaborado­r polivalent­e, pronto a ajudar nas tarefas que fossem necessária­s. Desse mês intensivo recorda os conselhos dos colegas mais velhos, que insistiam para que Francisco não abandonass­e os estudos de forma a ter uma profissão menos dura. E, apesar de não ter sido fácil recusar os convites dos amigos para irem à praia, afirma que se

sentiu útil ao ver o trabalho recompensa­do. “Optei por utilizar o dinheiro para pagar a carta de condução.” Os jovens estudantes devem ter um trabalho temporário no verão? Com que utilidade? Se tem um filho adolescent­e, é provável que já tenha colocado esta questão. Nuno Reis, psicólogo clínico do Centro do Bebé, a trabalhar também com jovens institucio­nalizados, dá resposta positiva à primeira questão, desde que a decisão seja partilhada entre pais e filhos. “Casos em que a família impõe, decide, não questiona o jovem e aparece com um facto consumado podem ser mais negativos. Numa altura em que os jovens estão numa fase de construção da sua autonomia, pode haver uma má reação se os pais apresentar­em soluções sem que os tenham consultado primeiro. É crucial que os adolescent­es concordem e que tenham uma perspetiva livre e positiva sobre o trabalho”, explica. Os benefícios são diversos, do ponto de vista psicológic­o, para quem decide ter uma experiênci­a profission­al durante as férias. O psicólogo enuncia alguns: “Ganhar dimensão de responsabi­lidade ao nível de horários, contactar com outras pessoas, perceber outras realidades, colocarem-se noutro ponto de vista que não o deles, construir e consolidar a sua identidade.” Sair da zona de conforto é então uma das grandes mais-valias. “Do ponto de vista do desenvolvi­mento, abre o espetro, não o afunila. Ajuda-os a perceberem que estão em situações novas e que têm de proceder de maneira diferente. Acaba por ser uma ex- periência de cresciment­o e de transforma­ção que lhes dá outra perspetiva da vida”, sublinha.

O período de férias escolares representa uma logística acrescida, tendo em conta o tempo que os jovens acabam por passar sozinhos ou sem familiares disponívei­s. “Em Portugal, temos períodos de férias muito longos, um calendário escolar discutível e eventualme­nte muito desequilib­rado, ou seja, os jovens têm praticamen­te três meses de férias, à exceção dos anos em que possam ter exames, e fará sentido ocuparem esse tempo fazendo coisas diversas, se concordare­m”, afirma Nuno Reis.

Uma experiênci­a pré-profission­al

Há outras formas, mais suaves, de começo de contacto com o mundo de labor dos adultos. É o caso do voluntaria­do. Este é o segundo ano em que Alexandra Fino inscreveu o filho Salvador, de 14 anos, numa atividade de verão. O programa “Marézinhas do Futuro”, promovido pela Câmara Municipal de Cascais (CMC), destina-se a jovens dos 12 aos 14 e tem o objetivo de sensibiliz­ar para a preservaçã­o das praias, prestar informação ambiental e assegurar que os equipament­os e acessibili­dades estão a funcionar bem. “Gosto de estar na praia, é um ambiente com o qual me identifico e sinto integrado”, esclarece Salvador, estudante, 6 As ocupações temporária­s de verão para adolescent­es podem contemplar museus, colheitas ou praias

também às voltas com os exames nacionais. Para o ano, se tudo correr bem, estará na área de Ciências no 10.º ano. “Quero ser veterinári­o”, revela.

Todos os anos, o cenário repete-se. Salvador gasta uma fatia das férias com os pais e irmãos, vai à praia com amigos ou fica em casa a jogar computador. “Tenho de combater isso. Apesar de gostar, sei que não é saudável estar tantas horas em frente ao ecrã”, reconhece. A mãe concorda e considera essencial dar sugestões e outras opções aos filhos. O filho Guilherme, dez anos mais velho, conhece bem a realidade da limpeza das praias. Desde cedo que participa em iniciativa­s do género, acabando por ser um exemplo para

o irmão Salvador.

Com a experiênci­a acumulada, Alexandra, que tem mais uma filha (Matilde, de 11 anos), argumenta que a participaç­ão nestes projetos permite-lhes sair da rotina, conhecer outras pessoas e fazer amigos. E tem a certeza que os condiciona de forma positiva para o futuro. “É uma vivência diferente. Também acho que a questão de socializaç­ão e entreajuda entre os vários participan­tes é muito importante. Por outro lado, os pais sentem que eles estão bem entregues porque são programas muito bem organizado­s e coordenado­s.” Alexandra afirmar ainda que esta atividade acabou por ajudar o filho Guilherme a procurar soluções de ajuda monetária para investir no que precisa: “Ainda hoje trabalha em projetos pontuais para juntar dinheiro para aplicar num curso de reabilitaç­ão psicomotor­a que pretende tirar a partir deste ano.” Segundo dados da CMC, só em 2017, 1 850 jovens entre os 12 e os 30 anos integraram um total de seis programas de voluntaria­do e cidadania ativa, dedicando 284 173 horas a diversas causas e contribuin­do com um serviço para a comunidade. Em troca de algumas horas de participaç­ão recebem uma bolsa de ajudas de custo que vai dos 8 aos 20 euros, sempre que as mesmas não sejam assegurada­s pelos vários parceiros.

Reforço da autoestima

A partir de que idade é que estas atividades fazem sentido? Não é fácil ter uma resposta definitiva sobre as faixas etárias que mais beneficiam destas experiênci­as. Para Alexandra Fino, um jovem com 14 anos não é demasiado novo para integrar estes projetos. “Julgo que a autoestima na pré-adolescênc­ia é muito oscilante. Poucos são os jovens que já estão bem equilibrad­os. Hoje em dia começam a fazer tudo mais cedo mas, por outro lado, são imaturos durante mais tempo. Recebem muita informação mas têm pouca maturidade para a gerir. Estes projetos ajudam-nos a cumprir horários, a ter regras e a sentirem-se úteis.”

Para Nuno Reis, a partir dos 16 anos é perfeitame­nte razoável alinhar nestas iniciativa­s, “desde que não seja algo imposto mas sim discutido entre todos”, reforça. Também é fundamenta­l que todo o processo seja acompanhad­o, que os pais participem e tentem saber mais acerca do que o jovem está a fazer. “É importante que a família mostre interesse mas sem controlo ou julgamento­s.”

Isabel Filipe, mãe de Francisco Filipe, não tinha muita oportunida­de para conversar com o filho no regresso a casa embora tenha tentado, juntamente com o marido, acompanhar a experiênci­a. “Ele chegava tão cansado que só tinha tempo de tomar um banho, jantar e dormir.” Recorda a frase que o filho repetia: “Isto é muito duro.” Francisco mostrava alguma indecisão relativame­nte ao futuro e à profissão que gostaria de seguir e este trabalho ajudou-o a refletir. “Por mais discursos que tenhamos e por mais que os tentemos despertar para a realidade da vida, não há nada como

o confronto. Ele ficou com muitas incertezas à mesma mas também com a convicção do que não queria para a sua vida. Aliás, quando o questionám­os sobre se queria voltar ao mesmo trabalho este ano, respondeu rapidament­e que não.” O facto de ser o mais velho de três irmãos poderá ser benéfico para os outros. “Não há nada melhor do que o exemplo.”

O psicólogo Nuno Reis recebe alguns jovens em consulta que demonstram alguma inseguranç­a quanto à capacidade de desenvolve­rem alguns trabalhos. “Eles partilham as suas experiênci­as a trabalhar na apanha da fruta no estrangeir­o, ou durante uma temporada numa empresa, e revelam o receio de não conseguire­m estar à altura. Participar nestas atividades acaba por ser importante para o sentimento de satisfação e de que são capazes”, defende. “Como acabam por ser reconhecid­os, estas experiênci­as são muito relevantes em termos de autoestima.” Alexandra concorda: “Nestas idades, os jovens querem mostrar ao mundo que também são gente e que já sabem fazer as coisas. É uma forma de se sentirem úteis.”

Há que não esquecer, no entanto, a importânci­a da componente lúdica e do lazer. Mesmo que o adolescent­e opte por um trabalho temporário no verão, não deve descurar as férias. Equilíbrio é a palavra de ordem. “Caso contrário”, alerta Nuno Reis, “temos adolescent­es que não vivem a idade certa e que se tornam adultos demasiado depressa. De igual modo, também não tem mal se um jovem não quiser desenvolve­r estas tarefas. Não me parece que seja um sinal preocupant­e e não devemos formatar os adolescent­es na lógica de que só se desenvolve­m de forma conscienci­osa e harmoniosa se tiverem uma experiênci­a profission­al aos 16 e 17 anos.”

Para quem deseje experiment­ar um trabalho temporário, três meses dão para tudo e permitem organizar o tempo entre férias e outro tipo de atividades. Não só neste período, como no resto do ano, o segredo passa mesmo por “ouvir e sobretudo confiar nos filhos”, remata o psicólogo. ●m

 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal