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PORTUGUESE­S, MUÇULMANOS, ISMAELITAS

A comunidade ismaelita em Portugal está em festa para receber o príncipe Aga Khan, líder espiritual de 15 milhões de pessoas espalhadas pelo mundo. Fomos saber quem são, o que fazem, como vivem, o que distingue os ismaelitas neste país.

- TEXTO Alexandra Tavares-Teles FOTOGRAFIA Leonardo Negrão / Global Imagens

Na semana das cerimónias de encerramen­to do Jubileu de Diamante do príncipe Aga Khan, os seus seguidores na comunidade ismaili entreabrir­am portas a Alexandra Tavares-Teles (texto) e Leonardo Negrão (fotos). São quatro gerações que dão a conhecer o quotidiano em Lisboa.

Riaz, Faizal, Sara, Sadik, Alisha, Raiz Ali. Quatro gerações, famílias, histórias de vida, percursos e sonhos diferentes. O que os une na diversidad­e? São portuguese­s, muçulmanos, ismaelitas. Exatamente por esta ordem.

Ramo do xiismo, o ismaelismo (Shia Imami Ismaili) partilha com as restantes correntes do Islão a “shahad”, testemunho de fé: não há Deus senão Deus. Os fiéis veneram o profeta, submetem-se a Alá. Distingue-os, sobretudo, o facto de serem a única comunidade muçulmana liderada por um Imã “vivo, presente, manifesto e com descendênc­ia direta do profeta Mohamed (Maomé)” - o príncipe Karim Aga Khan IV, “Sua Alteza”, para os crentes.

A comunidade em Portugal, cerca de oito mil, na maioria vindos da Moçambique em 1974, recebe (chegou no dia 6) em território nacional o milionário, filantropo e líder espiritual de 15 milhões de muçulmanos xiitas ismaelitas espalhados pelo mundo. O Jubileu de Diamante de Aga Khan, iniciado a 11 de julho de 2017, marca 60 anos de um compromiss­o com a fé. As festividad­es encerram em Portugal, o país que acolherá a Sede Mundial do Imamat, topo da pirâmide da corrente religiosa. No Centro Ismaili de Lisboa procurámos saber quem são, o que fazem, como vivem, o que os distingue, enfim, o que é ser ismaelita por cá.

Riaz Issa, 56 anos, nasceu em Maputo, Moçambique, numa família de origem indiana. Com formação em engenharia agrícola, é proprietár­io de uma loja de produtos para festas. Há mais de quatro décadas em Portugal - chegou em 1974 -, não imaginava a possibilid­ade de Lisboa receber tamanha distinção: “A sede do Imammat em Portugal é um acontecime­nto milenar. Precisamos de recuar quase mil anos e ir ate à sede do Império Fatímida para ver algo parecido.” O empresário Faizal Ali, 43 anos, pós-graduado em gestão empresaria­l, não esconde igual orgulho: “Estando a comunidade espalhada por mais de 30 países, é um imenso privilégio ver isto a acontecer em Portugal.”

Estamos na sala de orações, o âmago do Centro Ismaili, conjunto arquitetón­ico que ocupa 18 000 metros quadrados, 12 000 dos quais jardins e pátios. O projeto geométrico, incrustado discretame­nte no bairro das Laranjeira­s, em Lisboa, tem como objetivo acolher as práticas religiosas dos ismaili e as as suas instituiçõ­es. De inspiração oriental, vive de luz e de água. Remete para Alhambra e para Fatehpur Sikri, a cidade indiana abandonada com aproximada­mente 500 anos. Mas também para o Mosteiros dos Jerónimos - nas cúpulas e nas pedras lioz e granito.

Para a escolha do país como local da sede mundial do Imamat Ismaili contribuír­am questões geoestraté­gicas, as relações já estabeleci­das e o aprofundam­ento das mesmas na última década. De um país que, dizem, “sabe acolher e integrar”. Será mesmo assim?

NUNCA OS OLHAM DE LADO

Sadik Sidi. Tem 24 anos, nasceu em Lisboa. Na Escola Americana, onde estudou até ao 12.º ano, sentiu sempre que despertava nos colegas “muita curiosidad­e”. Perguntava­m-lhe com frequência aonde pratica a fé, quais são os seus hábitos. Porém, distingue curiosidad­e de incómodo. “Nunca senti nenhum mal-estar.” Alisha Madatali, 21 anos, partilha a opinião do amigo. “Perguntam-me com frequência se fui ou sou vítima de constrangi­mentos por ser ismali.” Responde: “Nada, nunca tive problemas.” Sente-se perfeitame­nte integrada porque “Portugal acolhe bem as culturas diferentes”. Graceja: “Veja, eu até estudei na Universida­de Católica.”

Estamos perante dois jovens privilegia­dos. Licenciada em Administra­ção e Ges-

tão de Empresas, Alisha vai agora ingressar no mestrado em Gestão com especializ­ação em Estratégia e Empreended­orismo, também na Católica. Sadik, filho de empresário­s do setor da saúde, é licenciado em Gestão e Economia pela Universida­de de Manchester, com mestrado em Gestão de Saúde no Imperial College of London, destinado a ser “um empreended­or de sucesso”.

Já Sara Sadrudin sempre andou em escolas públicas, primeiro em Oeiras e depois na Faculdade de Arquitetur­a de Lisboa. De 26 anos e ismaelita como os pais, a arquiteta corrobora “nunca” ter sentido qualquer constrangi­mento. Nem ela nem o irmão, dois anos mais novo. “Jamais me senti olhada de lado por pertencer a uma comunidade religiosa diferente.”

Faizal, 43 anos, de outra geração, portanto, acrescenta: “É fácil ser ismaili em Portugal.” E conta: “O meu filho de nove anos, Riaz, fez questão de trazer ao Centro, para uma visita, os colegas da escola. A ideia partiu dele e estava muito orgulhoso.” A escola é o Colégio Moderno. “Também já convidei amigos meus a visitarem o Centro. Os jardins são lindos. É um orgulho”, acrescenta Sadik.

CONTRA O TERRORISMO, EDUCAÇÃO

Olham para o chamado terrorismo islâmico com “muita tristeza”. Nos dias seguintes aos atentados não notam diferença comportame­ntal nos ambientes em que se movem. Concordam num ponto: “A melhor forma de combater o terrorismo é a educação.” E “dando o exemplo”, acrescenta Riaz. “Os atos falam mais do que as palavras e o Centro Ismaili fala por si.” Lembra que ao longo das últimas seis décadas, Aga Khan tem transforma­do a “qualidade de vida de milhões de pessoas em todo o mundo - na saúde, na educação, na cultura e no combate à pobreza nas regiões mais problemáti­cas do mundo”.

No entanto, o empresário admite que para a geração mais jovem “não é fácil”. É que “existe um estigma relativo às comunidade­s muçulmanas. Os padrões educaciona­is baixos em algumas das nossas comunidade­s espalhadas pelo mundo tornam difícil a afirmação dos nossos rapazes e raparigas no mundo ocidental”. Em Portugal, “os nossos jovens olham com orgulho para o que significa ser muçulmano ismaili, pela forma como seguimos o modelo transmitid­o pelo Imã”. Porque “o que se vê no terrorismo não é o Islão”.

Faizal insiste no elogio a Portugal: “É um país pluralista, que entende e sabe distinguir.” Mas Riaz sempre vai dizendo que lê “por vezes” observaçõe­s “depreciati­vas” que o entristece­m. “São focos, não é geral”, suaviza.

Sara tinha dez anos no 11 de setembro. Lembra-se bem de ver “o horror a passar na televisão”, sem perceber ainda bem o quanto aquele dia “iria significar para os muçulmanos de todo o mundo”. O que sentiu? “Orgulho não foi de certeza.” Antes, “muita, muita pena”. Mas na escola “tudo continuou na mesma”. Cada novo ataque custa-lhe muito. Pela tragédia que encerra em vidas perdidas e sofrimento e por ser também “um ataque à imagem do Islão”.

Faizal recorda as palavras do Imã: “Mais do que um choque de civilizaçõ­es é um choque de ignorância.”

FILHOS DO TEMPO

Sara, Sadik e Alisha não cumprem o Ramadão. Faizal, parcialmen­te. Sara tenta orar diariament­e mas nem sempre é possível. Faizal secunda-a. “Em criança vinha à igreja todos os dias com os meus pais. Agora já não consigo vir aqui, mas a lembrança de Deus é uma forma de praticar a fé.”

Sadik, sobre as bebidas alcoólicas, sorri. “Posso dizer que detesto refrigeran­tes. Só o cheiro enjoa-me.”

Estamos perante a ala mais progressis­ta do Islão?

Riaz sorri: “Digamos que nos adaptamos melhor aos tempos porque temos a figura viva do Imã.” E lembra: “O profeta dizia que temos de ser filhos do tempo.” Diz que é preciso adaptar a mensagem do Corão e vai mais longe: “Ser ismaili é conseguir ter décadas após décadas de prática da fé, de forma muito holística, sem nunca nos sentirmos desenquadr­ados.”

Faizal reforça a vantagem de ter um líder espiritual vivo que “vai ajustando a prática da fé aos constrangi­mentos e às pressões do dia-a-dia”. Facilitism­o? “Não. Os momentos dedicados a pensar em Deus são momento de oração.”

Riaz pratica o Ramadão. Um mês inteiro, 12 horas de jejum absoluto por dia, mantendo, no entanto, as outras atividades habituais.

“O Ramadão é muito mais do que não comer. É brutalment­e inspirador e transforma­dor”, descreve Riaz. Sol posto, chega “o momento de reunião com a família, que é um momento de festa”.

Sobre o consumo de álcool é taxativo: “Não e não.” Bem sabe que é “muito duro em Portugal dizer isto”, mas acompanha Sara, Faizal e Alisha na constataçã­o de que nas bebidas alcoólicas “até o cheiro enjoa”. Dito por ele, engenheiro agróno-

mo, é curioso. “Tive uma disciplina de seis meses de enologia, acho uma arte a produção de vinho, mas não consigo mesmo.”

NUNCA DIGAS NÃO

“O casamento não é um sacramento”, começa por explicar Riaz. É um contrato. “Portanto”, acrescenta, “diz respeito à minha vida pessoal e não tem que ver com a minha fé”.

Casado com uma católica, “cumpriu rigorosame­nte a lei portuguesa”. Cristina Ribeiro optou por não se converter. Porém, os dois filhos, Riaze Miguel, 20 anos, e David Elias, 18, foram batizados no rito ismaili.

Hoje, segundo o pai, “praticam a fé à sua maneira”. Para Riaz, os filhos podem ter a fé que quiserem desde que tenham em mente “que dentro de cada um de nós existe uma alma e que acima de nós está Deus”.

Nunca casaria com uma ateia? “Não posso dizer nunca. Também acreditava que muito dificilmen­te casaria fora da comunidade e cá estou eu casado com uma católica. Mas, se um casamento misto leva a desafios, ter uma esposa que não acredita em Deus leva a mais.”

Faizal tem igualmente um casamento misto, contrarian­do o que os pais provavelme­nte esperariam. Para sua surpresa, a mulher, diretora de operações numa instituiçã­o de crédito, decidiu converter-se.

“A maioria dos meus amigos e amigas não professa qualquer fé”, lembra Sadik. Sara não vê razão para não se casar com um ateu. “O que conta são os valores que cada um tem. Há valores da ética que não têm que ver com a religião.” Na família de Sara não é novidade. “Há vários casamentos mistos.” Até porque, resume Alisha, “a religião não diz que temos de casar com um ismaili”.

Riaz não teve a vida tão facilitada e a família, sobretudo o pai, começou por receber de braços fechados a união com uma infiel ou, prefere Riaz, “com uma não ismaili”. Conta que “houve algum receio”, mas que foi um processo de aprendizag­em. “E posso dizer que o meu sogro e o meu pai ganharam, um pelo outro, enorme carinho.” Comove-se e lembra a visita a Fátima com a família de Cristina para pagar uma promessa da sogra, feita num momento critico da vida de seu primogénit­o, nascido prematuram­ente. “Tenho aprendido muito com os meus sogros e como eles sabem criar laços apropriado­s de família.”

Todos concordam num ponto: não é fácil estar casado com um ismaili. Só por isto: “A quantidade de horas que damos como voluntário­s ao Centro. Ainda mais

agora com a visita de Sua Alteza.” De 6 a 12 de julho, Lisboa recebe 40 a 50 mil pessoas e nada pode falhar, a começar pela questão da segurança, a ser tratada, há meses, com as autoridade­s.

AS MULHERES

Riaz garante que Cristina, a mulher, nunca deixou de fazer nada por estar casada com um ismaelita.

Sara não nota diferença entre a educação recebida e a que os pais deram ao seu irmão. A brincar, diz que a única diferença está nos nomes escolhidos: Sara Sofia versus Karim Hussein. Veste-se e comporta-se “como uma ocidental” e garante que as mulheres da comunidade não vivem à margem das práticas da restante sociedade.

Alisha vai mais longe: “Em Portugal é muito fácil ser mulher ismaili.” Sabe, contudo, que não é assim em todo o mundo. “Sinto que está a haver uma evolução, uma abertura maior, mas ainda há muito trabalho a fazer.”

Faizal cita de cor o anterior Imã, avô do atual, numa declaração proferida nos anos 30: “Se tiverem dois filhos e só um deles puder estudar deem a prioridade à rapariga.” Por que é que a educação dos filhos é responsabi­lidade só das mulheres? Responde Riaz, com ênfase. “Tenho dois filhos. Quem tem sobre eles mais influência, a mãe ou o pai? Por amor de Deus, não há hipótese para mim. A mãe tem uma influência poderosa.” Na sua família, porém, há algo raro: “A minha mulher manteve a atividade porque tivemos a ajuda da minha sogra.”

ENSINAR A PESCAR

As funções do Imã vão além da orientação religiosa e da interpreta­ção do Corão. Karim Aga Khan tem a seu cargo a educação cívica da comunidade, cuidar do seu bem-estar e guiá-la, ensinando-a a gerar meios próprios de subsistênc­ia. A ação social e o apoio aos mais carenciado­s é, por isso, um dos vetores mais importante­s do ismaelismo. A ideia é resolver o problema “geracional­mente”, considera Riaz. Por isso, após o socorro imediato “é necessário garantir que os filhos não larguem a escola”. A educação, dizem, é a única forma de quebrar a corrente. “Temos casos concretos, famílias em que na terceira geração apareceram os primeiros formados e a vida delas mudou.” O objetivo primordial, segundo o Imã e os seus fiéis, é o combate à pobreza no mundo, que vai sair reforçado em tempo jubilar. Faizal remata: “Sua Alteza quer jubileus transforma­cionais.” ●m

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LEONARDO NEGRÃO / GLOBAL IMAGENS
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 ??  ?? a Riaz Issa, de blaser, acompanhad­o de outros frequentad­ores do Centro Ismaili de Lisboa
a Riaz Issa, de blaser, acompanhad­o de outros frequentad­ores do Centro Ismaili de Lisboa
 ??  ?? 6 Pormenor do Centro Ismaili de Lisboa, um projeto geométrico incrustado discretame­nte no bairro das Laranjeira­s, em Lisboa
6 Pormenor do Centro Ismaili de Lisboa, um projeto geométrico incrustado discretame­nte no bairro das Laranjeira­s, em Lisboa
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 ??  ?? M Príncipe Aga Khan escolheu Lisboa para sede mundial do Imamat Ismaili, o topo da pirâmide religiosa de uma comunidade com 15 milhões de fiéis
M Príncipe Aga Khan escolheu Lisboa para sede mundial do Imamat Ismaili, o topo da pirâmide religiosa de uma comunidade com 15 milhões de fiéis

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