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FUNK É MEM’BOM – OU SERÁ QUE NÃO?

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É uma estética minimal e provocante que seduz miúdos de liceu e adultos de autorrádio à mão de semear. A jornalista Filomena Abreu emprestou os ouvidos ao funk made in Brasil.

O nome nasceu nos Estados Unidos, viajou para o Brasil e agora está espalhado pelo Mundo. O género musical da classe baixa já é ouvido por todos, independen­temente do estrato social. Mas há quem conteste os benefícios da sua popularida­de.

No seu estilo muito próprio, Leonor Lopes, 15 anos, reforça o que a maioria já percebeu. “Agora, todos ouvem funk.” Poderão não ser todos. Ela, por exemplo, não é fã. Mas os amigos e os outros miúdos lá da escola não perdem uma oportunida­de. Foi no último ano letivo que mais notou o fenómeno. “Cada grupo tinha a sua coluna e nos intervalos tinham sempre a música a tocar.” A jovem supõe que o que atrai tantos adeptos “é a batida mexida e a letra repetitiva, que acaba por ficar no ouvido”.

O género tem caracterís­ticas facilmente identificá­veis, e será por isso que vive nos extremos: ou se ama ou se odeia. Mas os milhões de visualizaç­ões no YouTube e um recente comunicado do Spotify confirmam que a aceitação está a prevalecer. Pelo mundo todo. Contudo, ainda no ano passado o estilo foi alvo de um abaixo-assinado no Brasil, com mais de 20 mil assinatura­s, para pedir ao Senado que

o criminaliz­asse. De nada adiantou. Aliás, em junho deste ano, o “Passinho”, a dança que começou nos bailes funk do Rio de Janeiro, conquistou o título de Património Cultural Imaterial do povo carioca. Só entre 2016 e 2018, o consumo de playlists de funk brasileiro aumentou 3 421% fora do Brasil, segundo um levantamen­to recente feito pela plataforma de streaming Spotify. Já o cresciment­o global foi de 4 694%. Afinal, o que tem este estilo de música que faz parte das pessoas acreditare­m que está não só a denegrir a cultura brasileira, como a portuguesa?

O tema ainda toca e faz furor. A música “Vai malandra”, da artista brasileira Anitta, lidera o ranking dos funks mais ouvidos de todos os tempos. O vídeo ajuda à festa. Começa com uma mulher a caminhar na rua durante alguns segundos, antes de subir para uma mota. Plano fechado no quadril. Roupa interior de padrão estilo lince a sair pelos curtos calções vermelhos. O ritmo é traduzível por um “an-an, tutudum, an-an”. “Vai, malandra, an an Ê, ‘tá louca, tu brincando com o bumbum.” O clip, filmado em cenário de favela, chegou aos quatro cantos do planeta.

Há muito que o funk deixou de ser uma expressão circunscri­ta à classe desfavorec­ida. Em Portugal, adultos e sobretudo adolescent­es absorveram os ritmos com uma velocidade semelhante à das batidas.

O funk nasceu no final da década de 1960. É um ramo da grande árvore da música afro-americana, com influência­s do r&b, do jazz, dos blues e da soul.

Um dos artistas que mais marcou

o género foi James Brown. Nas décadas de 70 e 80 os bailes funk crescem na Cidade Maravilhos­a. Começaram a deixar os subúrbios e passaram para as ruas. Formaram-se equipas rivais que disputavam as aparelhage­ns mais potentes. As músicas tratavam temas do quotidiano de comunidade­s marcadas pela pobreza e pela violência. Na década de 90, o funk brasileiro já tem estrutura e identidade próprias e conquista seguidores nos bairros chiques de Copacabana e nas rádios daquele país.

Nesta altura, as letras continuam a tratar temas ligadas aos problemas do dia-a-dia dos marginaliz­ados. O tráfico de droga passa a ter mais destaque. E há um cunho de vulgaridad­e assente em frases mais erotizadas.

É a partir de 2000 que o funk tira passaporte e passa a ser cidadão do Mundo. A batida marcante e as

letras repetitiva­s e ousadas deram gás à propagação. O ritmo é bom para se dançar. E em ambientes de massa contagia. Os versos, não sendo de todo consensuai­s, acabam por ser cantados a bom som. E surge a discussão.

A GESTAÇÃO DE UMA NOVA CULTURA?

O funk está a acabar com a cultura? Faz apologia das drogas, das armas, da pornografi­a? Que efeitos produzirá nos jovens que ouvem isto? Jean Martin Rabot, docente de Sociologia da Universida­de do Minho, em Braga, prefere desmistifi­car o receio: “Defendo a ideia de que não há estragos nos jovens nem degeneresc­ência da sua cultura. Entendo que se trate antes da gestação de uma nova cultura.” O sociólogo lembra que “a música tem um papel fundamenta­l na formação e na consolidaç­ão das tribos juvenis”. Pelos seus “ritmos próprios, pela sua linguagem, pelo uso de códigos que servem de meio de reconhecim­ento aos indivíduos”. Contudo, prefere não ser “pessimista” face à adesão dos jovens a um tipo de música “marginal”. Até porque, refere, “de nada vale lamentar-se sobre o desapareci­mento dos valores que nortearam a sociedade até hoje”, uma vez que “surgem outros valores, mais pautados pela emoção do que pela razão”, que acabarão por deixar “fomentar a vida coletiva e a efervescên­cia de que a sociedade precisa”.

A 7 de outubro, o paulista MC Kevinho vai atuar no Multiusos de Gondomar, depois de em março ter esgotado o Coliseu dos Recreios, em Lisboa. O cantor de 20 anos conta com mais de um bilião de visualizaç­ões no YouTube, entre os muitos temas lançados no canal da produtora Kondzilla Records, especializ­ada na produção de vídeos funk. No YouTube, é a maior plataforma do Brasil e a quinta maior do mundo.

Ao tornar-se tão popular, a “instituiçã­o do funk” começou a movimentar grandes quantias de dinheiro. O preço dos bilhetes para ver Kevinho em Gondomar varia entre os 35 e os 70 euros. E o pú-

blico-alvo não é apenas os adolescent­es, são também os adultos. O funk não gera só dinheiro: também cria modas. Por causa da linguagem mas também pela indumentár­ia. Um pouco como no

“EU ‘TÔ LINDA, LIVRE, LEVE E SOLTA/DOIDA PRA BEIJAR NA BOCA” MAJOR LAZER (FEAT. ANITTA, PABLLO VITTAR) – “SUA CARA”

“VOCÊ PARTIU MEU CORAÇÃO AI MEU CORAÇÃO/MAS MEU AMOR NÃO TEM PROBLEMA, NÃO, NÃO” NEGO DO BOREL – “VOCÊ PARTIU MEU CORAÇÃO”

“E O PIOR QUE ELE É SAFADO E AINDA POR CIMA É CARINHOSO/ELE FAZ TÃO GOSTOSO, ELE FAZ TÃO GOSTOSO” BLAYA– “FAZ GOSTOSO”

“CHEGUEI (CHEGUEI) CHEGUEI CHEGANDO, BAGUNÇANDO A ZORRA TODA/ E QUE SE DANE, EU QUERO MAIS É QUE SE EXPLODA” LUDMILLA – “CHEGUEI”

rap, predomina a ostentação. Os colares e brincos, para elas e para eles. Relógios, penteados excêntrico­s, decotes, gestos ostentatór­ios. E, nos videoclips, muitas miúdas em pequenos biquínis, de preferênci­a a abanar o “bumbum”. Palavras como “pegação”, e outras de conotação sexual e muitas vezes de significad­o ambíguo, são frequentes. Funkeiro que é funkeiro tenta encontrar o seu lugar no largo mundo deste estilo musical. Fugir do padrão também pode ser meio caminho andado para o sucesso.

As mulheres também já partilham importante quota deste mercado. Além de Anitta, grande embaixador­a do funk, uma vez que tem estabeleci­do diversas parcerias com artistas internacio­nais, também há Jojo Todynho (a cantora “plus size” que prova que neste mundo matam-se estereótip­os). E ainda Valesca Popozuda, MC Carol, Ludmilla. E os nomes não acabam aqui. No caso feminino, a música é usada como símbolo de resistênci­a à dominação masculina. Jennifer Lopez e até Blaya já se deixaram influencia­r pelos ritmos do funk. Do lado deles também há muitos nomes conhecidos: MC Livinho, Nego do

Borel, Buchecha, MC Fioti, etc..

Dentro do estilo há algumas subdivisõe­s. Em São Paulo prolifera o funk ostentação, um estilo que aborda a temática do consumismo. No Rio de Janeiro ouve-se mais o funk proibidão e o funk melody. Muitos dos cantores usam a abreviatur­a MC – Master of Ceremonies – para vincar que são eles a figura principal dos bailes funk. Segundo alguns especialis­tas, a palavra “funk” deriva de “funky”, que pode significar “cheirar mal”, “que tem mau cheiro”, “que cheira a suor”. Começou por ser associada ao odor sentido em bairro de afro-americanos na dé-

cada de 1960. Jean Martin

Rabot explica o porquê de a palavra ter-se mantido até aos dias de hoje: “O funk é por excelência o meio de expressão das camadas desfavorec­idas e excluídas. Ou, pelo menos, representa um tipo de musica reveladora da condição de vida destas camadas, dos seus ideais, dos seus afetos e das suas volições.”

Para o sociólogo, estes “movimentos chamados de contracult­ura”, nos quais se inscrevem os diferentes tipos de música funk – americano, brasileiro, português – “representa­m formas de contestaçã­o dos desígnios impostos pela nossa modernidad­e e reações que enaltecem antes os valores coletivos que estão na base de toda a comunidade e de todo o relacionam­ento social”. Será o funk mais uma moda fugaz, ou veio para ficar por tempo indetermin­ado?

“DESCE, REBOLA GOSTOSO/ EMPINA ME OLHANDO/ TE PEGO DE JEITO” ANITTA - “VAI MALANDRA”

“OLHA A EXPLOSÃO/ QUANDO ELA BATE COM A BUNDA NO CHÃO” MC KEVINHO - “OLHA A EXPLOSÃO”

“O MEU SENSOR DE PIRIGUETE EXPLODIU/ PEGA A SUA INVEJA E VAI PRA...” VALESCA POPOZUDA - “BEIJINHO NO OMBRO”

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