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PAI NO FIO DA NAVALHA

- Silêncio aborrecido na sala. Nuno tinha acabado de dizer que não trabalhava. Ou estávamos todos de ouvido avariado? Nuno percebeu a contradiçã­o e escolheu a saída épico-familiar: — Tenho uma grande mãe e uma grande avó que ajudam muito. Para não me meter

A certa altura deixei de me preocupar com o homem que se defendia no tribunal, passei a minha aflição para as pessoas que ele trouxe ao mundo. Vi uma espécie de escada familiar, avós, pais, filhos, netos a descerem uma falésia. Mas talvez ninguém caia e Nuno se consiga equilibrar. Quando se levantou no banco dos réus, trazia explicaçõe­s na ponta dos dedos, deixava cair frases amareladas, a cheirar a fumo, apagadas a meio como beatas. — O senhor cometeu um crime no período de suspensão da pena. Além do relatório social, que não é inteiramen­te favorável...

A juíza avaliara casos semelhante­s. Os técnicos de reinserção social de Nuno explicavam que este tinha faltado aos tratamento­s da toxicodepe­ndência, que não fora às consultas nem provara estar a trabalhar. E a acusação criminal dizia que Nuno, já com trânsito julgado por vender droga, fora apanhado a fumar haxixe na rua.

A explicação de Nuno tem de ser verdadeira, de tão boa: — Porque era Dia do Pai e estava com o meu filho, e eu não queria estar a fumar com o meu filho...

— Porque era Dia do Pai!?

— Fui cá abaixo e foi aí que apareceu o polícia.

Encadeamen­to lógico: sabendo que ia cometer um crime, achou que o devia cometer para comemorar o Dia do Pai, compromete­ndo pelo caminho o seu dever paternal.

— Temos de optar por pena de prisão efectiva, é isso?, perguntou-lhe a juíza.

— Estou a fazer um plano que vem das Taipas para deixar o haxixe.

— Pelos vistos, continua a fumar.

— Nunca mais estive metido nesses sítios!

— Então como é que comprou?

— Fui lá só comprar. Nunca mais voltei a vender. Quis fumar só uma ganzinha e foi mau.

— Foi mau porquê? Porque foi apanhado? — Não, eu quero deixar!

— Sabe que o senhor aqui tem dois anos e quatro meses para cumprir?

— Eu estou-lhe a prometer e a jurar!

— Os arguidos não juram. Então no Dia do Pai põe-se a fumar?

— Eu estava com a família em casa. Se saí para fumar foi por respeito às pessoas...

Sobrancelh­as levantaram-se no piso do tribunal. O respeito é muito bonito. Então Nuno perfilou-se em convicções de ferro: — Nunca mais quero. Quero deixar tudo, até o tabaco. Eu agora fumo dois maços. Quero ficar com a família, com os miúdos! Mas nesse dia, lembrou-lhe a juíza, o que ele quis foi fugir da família e ir drogar-se. Anestesiar-se para comemorar a alegria de ser pai. O ser humano é um poço de forças contrárias, vai lá mas é tomar o xarope que é para ver se não pioras, diziam-me em criança. A juíza levantou a cabeça e suspirou ao Céu dos Estudos Judiciário­s: — Eu tenho uma sorte... Marco sempre estas coisas para o dia em que vão começar a trabalhar e a tratar-se. Tenho de começar a marcar para uma semana depois!

Nuno engoliu a ironia.

— Eu, quando estou a trabalhar, ganho bem, 50 euros por dia, explicou depois o arguido.

E, no entanto, não trabalha.

— Eu suspendi o trabalho, o contrato, porque me ficaram a dever 200 euros. O dono da empresa não pagou.

— Então... o sacana! E não fez queixa dele?

— Disseram que não valia a pena. Fui lá falar com o dono... ele pagou, mas eu não queria trabalhar mais para ele.

— Neste momento, vive de quê?

— Do trabalho.

Nesta história começa é a faltar um grande pai. O AUTOR ESCREVE DE ACORDO COM A ANTERIOR ORTOGRAFIA.

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JOÃO VASCO CORREIA

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