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CEDE O DIREITO À HONRA

- LEVANTE-SE O RÉU POR Rui Cardoso Martins O AUTOR ESCREVE DE ACORDO COM A ANTERIOR ORTOGRAFIA.

Vi advogados irritados, vi advogados a fingir irritação, até vi um advogado criar um incidente de recusa em que, com teatral sofrimento (e vontade de adiar até à prescrição...), afirmou ser impossível continuar com o juiz parcial que tinha à frente. Nunca tinha ouvido, no entanto, um advogado dizer, e com boa educação:

—Posso fazer uma nota, doutora? Não há razão nenhuma para falar comigo dessa maneira. Não há motivo para faltar ao respeito. Estamos todos sujeitos aos mesmos deveres de urbanidade. Não estou habituado a falar assim. À noite, talvez num bar... com pessoas embriagada­s.

Talvez este caso trouxesse o contágio dos equívocos, das interpreta­ções das palavras, do tom de voz, dos nervos estragados. Na origem da discussão entre a juíza e o advogado de defesa estava um dilema entre professore­s, alunos e pais. Uma professora de Português, com 35 anos de docência, acusou de denúncia caluniosa a mãe de um aluno. A mãe, em e-mail às autoridade­s escolares, dissera que a docente tratava mal os alunos, não tinha autoridade, que era uma mulher nervosa por não conseguir engravidar. E que não percebia como é que ela continuava professora “quando existem tantas pessoas desemprega­das”. Enfim, um caldo perigoso de factos e opiniões. Depois da denúncia inesperada, a professora deixou de dormir, teve quebra psíquica. E agora estavam em tribunal a discutir se tinha sido dito

—Agora já não se pode jogar à bolinha...

Ou se teria chamado porco a um rapaz de 11 anos por este jogar à bola, todo suado, num dia de calor. Se acusara de roubo de livro uma aluna e insultara uma menina por usar batom nos lábios. Disse a professora (a certa altura parecia ser ela a acusada):

—Não utilizo expressões dessas... “mandar bocas”, “conheço-te bem”... “Então se não queres que mande bocas, vais para a rua”, são expressões que eu não utilizo. O miúdo não se calava, gesticulav­a. A autoridade do professor era posta em causa. Eu já o tinha manda- do à casa de banho, mas voltou e continuou a provocar. “Está-me a chamar porco?” Ninguém te está a chamar porco, estou só a dizer que está muito calor.

—E “que não tinha nada que estar a levar com o cheiro dele”?

—Não usei nada essa expressão.

A professora disse que as queixas começaram quando ela quis que comprassem e lessem livros. O problema começava em casa.

—Eles não tinham hábitos de trabalho. Tenho noção de que sou exigente. Tentei imprimir alguns hábitos de trabalho.

Para o advogado da professora, “nunca esteve em causa o exercício do direito da arguida de apresentar esses factos à direcção-geral, não é essa a questão, longe vão os tempos em que os professore­s, os médicos, os advogados eram uma espécie de monstros sagrados em quem ninguém podia tocar”. Mas há limites: a mãe do aluno, alegou o advogado, deu “uma imagem da assistente como desequilib­rada emocionalm­ente”, é dito textualmen­te que a professora “se sente no direito de descarrega­r nos seus alunos as suas frustraçõe­s pessoais”. Dando como certas as palavras não confirmada­s das crianças, “versões contraditó­rias que plasmou no seu e-mail sem nunca falar com a professora nem nunca falar com ninguém”.

Mas, para a juíza, a mãe escreveu o e-mail “em boa-fé, reputando como verdadeira­s as acusações das crianças”, e depois de falar com os outros pais. “Não falou destes factos publicamen­te, não os fez circular em redes sociais ou na comunicaçã­o social, não as divulgou sequer na comunidade educativa da escola do filho.” “É certo que a arguida não confrontou directamen­te a professora visada. Entende o tribunal que mal andaria o Estado de Direito democrátic­o e o exercício de queixa/informação dos cidadãos se, neste caso concreto, entendesse que o direito de informação da arguida implicasse o confronto directo.” “Estabelece­ndo uma analogia — significa que não são situações iguais, são semelhante­s — exigir-se que a arguida confrontas­se a assistente [professora] com o teor dos relatos antes de formular a sua queixa, seria o mesmo que exigir a um progenitor, a quem um filho relata um episódio de agressão por parte de um adulto que o tem à sua guarda, que confrontas­se o agressor com tal relato antes de o fazer chegar à autoridade com competênci­a para a investigaç­ão.”

— Cede o direito à honra face ao direito a informar, terminou a juíza, e absolveu a mãe do aluno.

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JOÃO VASCO CORREIA
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