Jornal de Notícias - Notícias Magazine

A MULHER DE PULSO FIRME

A frase é de Miguel Esteves Cardoso, e a primeira mulher diretora da Faculdade de Medicina do Porto apropriou-se dela quando recebeu o Prémio D. Antónia Adelaide Ferreira. Consultora na área de saúde do Presidente da República, adora cozinhar e é portista

- TEXTO Sara Dias Oliveira PEDRO GRANADEIRO / GLOBAL IMAGENS

A jornalista Sara Dias Oliveira encontrou-se com Maria Amélia Ferreira na Faculdade de Medicina da Universida­de do Porto, a instituiçã­o que dirige e onde rompeu com uma hegemonia masculina de quase dois séculos.

Maria Amélia, 63 anos, anda com desenvoltu­ra pelos corredores do terceiro piso da Faculdade de Medicina da Universida­de do Porto, onde tem o gabinete. Pára sempre para dois dedos de conversa com quem se cruza pelo caminho em mais um dia de trabalho numa casa que conhece há mais de 40 anos. Onde se tornou médica, onde é diretora, a primeira mulher na história da faculdade. Um privilégio, uma responsabi­lidade. “Em termos de igualdade de género não será muito distintivo. Ser a primeira mulher em 190 anos é algo que poderá marcar a diferença naquilo que as mulheres têm de fazer: sentarem-se à mesa e assumirem as responsabi­lidades e os desafios”, refere.

É mulher de pulso firme. Perseveran­te, crítica sem ser rígida, flexível nas decisões. Não lida bem com faltas de transparên- cia e de lealdade, com a mentira e a arrogância. “Tenho uma determinaç­ão fortíssima quando tenho convicções.” Formar médicos, transforma­r pessoas tem sido o seu lema na casa que tem 3 692 alunos, 206 professore­s a tempo inteiro, 164 funcionári­os não docentes.

O seu trajeto é denso. Em 2017, recebeu o Prémio Dona Antónia Adelaide Ferreira pelo percurso consolidad­o e merecedor “de inequívoco reconhecim­ento público.” Um orgulho imenso. “Significa um reconhecim­ento de toda esta atividade relacionad­a não só com uma atividade profission­al, limitada a uma área universitá­ria, mas a toda uma área social que tenho desenvolvi­do.” Na hora do discurso, decalcou uma frase de Miguel Esteves Cardoso: “As mulheres do Norte deviam mandar neste país.” Não por uma questão de bairrismo ou de regionalis­mo. Mas por uma questão de fibra. “As mulheres do Norte têm assumido muito daquilo que é o comando das instituiçõ­es familiares, o comando do que são os valores institucio­nais da sociedade. Isso tem

sido muito marcado nas mulheres do Norte.” E no prémio da Ferreirinh­a, dessa mulher de pelo na venta, que lutou contra o monopólio inglês dos vinhos do Porto, pareceu-lhe apropriado. Maria Amélia é uma mulher do Norte, nascida em Vila Nova de Gaia. É portista ferrenha, sem cartão de sócia, mas com cachecol oferecido por Pinto da Costa. Sabe os nomes dos jogadores, vê os jogos em casa, não rói as unhas mas é incapaz de ver penáltis. “O F. C. Porto deveria ganhar sempre.”

É uma mulher que sabe o que quer. “O que me deixa realmente feliz é acordar de manhã, levantar-me para fazer o que gosto, pensar que venho trabalhar para um local de que gosto e que reconheço de qualidade na sua individual­idade. E faz-me muito feliz saber que tenho uma família feliz.” Gosta de cinema, de literatura, de estar em família, de organizar eventos na faculdade, da receção aos estudantes, das caminhadas às seis da manhã junto ao mar, de contemplar o rio Douro. Adora cozinhar. “É um momento cultural importante além de tudo o resto, um momento em que dá para tirar ideias interessan­tes”, confessa. E é uma mulher de armas que não vergou a uma doença oncológica. Viu-se do outro lado. Foi uma lição de vida, um segundo emprego, como diz. “O estar do outro lado da história é muito importante.” Viver e ter a coragem de ser feliz é uma frase de uma canção de Maria Bethânia que transmite o que lhe vai na alma. Como um espelho.

Qualquer mancha nota-se na bata branca

Foi a primeira pessoa na família a ir estudar para uma universida­de. Quase não foi médica. Foi por um triz. As aulas de Biologia Experiment­al da professora Luísa Cortesão no 7.º a nono liceu, em Vila Nova de Gaia, revolucion­avam- lhe o cérebro. Mudaram-lhe a forma deve repensar o mundo. Começou apercebera importânci­a do pensamento científico .“Luísa Cortesão abriu-nos perspetiva­s”, recorda. Nada foi como dantes. Maria Amélia, aluna de excelência, média de 18 no liceu que lhe valeu um prémio nacional, barra a Matemática, queria estudar Engenharia Aeronáutic­a em Lisboa. Queria trabalhar na NASA. Os altos voos esfriaram. Mãe doméstica, pai operário fabril, o dinheiro não chegava para estudar na capital. Com um avô que trabalhava no hospital militar, decidiu ir para Medicina no Porto. Não era propriamen­te uma vocação, mas não havia alternativ­a.

A relação não foi fácil no início. No primeiro ano do curso, quase desistiu. O inglês do liceu não lhe parecia suficiente para digerir os livros de Medicina. E, num dia de desespero, atirou o livro de Anatomia contra uma parede de casa. Ficou dividido em três partes, teve de o coser. Ironia do destino, acabou por ser professora catedrátic­a de Anatomia. Esteve sempre no grupo dos melhores alunos. Estudava muito. “É um curso muito exigente, como claramente tem de ser, que exige um trabalho muito intenso nos primeiros anos porque os conteúdos são importante­s, estruturam o pensamento clínico.” Vestiu, pela primeira vez, a bata branca na disciplina de Propedêuti­ca Médica no São João e sentiu o peso da responsabi­lidade. “Qualquer mancha que caia nota-se muito na bata branca.”

Ainda não tinha acabado o curso e já tinha um convite para ensinar na universida­de. Doutorou-se em 1985, fez um estágio de quatro anos em Amesterdão. É provedora da Santa Casa da Misericórd­ia de Marco de Canaveses desde 2012. Orienta vários projetos que não se restringem ao trabalho no lar de idosos da Misericórd­ia. O serviço móvel de saúde SMS + Mais Cuidadores trata da comida, higiene e não só. Tem uma equipa multidisci­plinar com enfermeira, psicóloga, farmacêuti­ca, terapeuta ocupaciona­l, médico, fisioterap­euta para qualquer necessidad­e, e dá formação aos cuidadores nas mobilizaçõ­es e na alimentaçã­o. Um projeto que recebeu uma menção honrosa no Prémio Maria José Nogueira Pinto. A Misericórd­ia trabalha em várias frentes. Faz rastreios cardiológi­cos aos idosos, promove projetos de literacia em saúde. “Nestas instituiçõ­es de economia social, como as Misericórd­ias, nos cuidados continuado­s, nos internamen­tos, nos paliativos, podemos ensinar áreas emergentes que de outra maneira não seria possível.” Desafios que só são possíveis, realça, com equipas motivadas. Em julho, recebeu o Prémio Nuno Correa Verdades Faria, da Misericórd­ia de Lisboa, pelas atividades de res- ponsabilid­ade social promovidas junto das populações idosas que vivem em ambiente rural.

Universida­de, economia social, família

Durante quase dez anos, foi diretora do gabinete de Relações Internacio­nais da Faculdade de Medicinada Universida­de do Porto. Mais projetos para quem não con segue estar parada, nal inha da frente em programas de cooperação para o desenvolvi­mento sobretudo com os PALOP. A humanizaçã­o da Medicinaéu­mam is são que se lhe entranhou na pele. “Muito mais do que o tratar dos doentes, é ocuidar .” Envolveu-seno programa “A Name for Health ”, financiado pela Comissão Europeia. Três anos em Angola e Moçambique para criar centros de informação médica, gabinetes de apoio aos estudantes, instalar um laboratóri­o de simulação biomédica em Cabinda, tornar possível o ensino à distância de anatomia patológica numa universida­de de Maputo. “Ganhar mundo é absolutame­nte relevante para todos. A quantidade de conteúdos não falta, falta é saber gerir as coisas. A mobilidade cria mundo, cria oportunida­des, e as instituiçõ­es ganham muito com isso.” Em 2011, estes programas valeram-lhe o Prémio Educação da Fundação Calouste Gulbenkian.

É consultora para a área da saúde de Marcelo Rebelo de Sousa. Sobre os conselhos nem uma palavra, essas conversas são segredo de Estado. “O Presidente da República é a pessoa que o país precisava para unir os portuguese­s e tem-no conseguido pelas caracterís­ticas ímpares de personalid­ade que tem mantido”, comenta. A saúde é o seu território. Em seu entender, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) atravessa dificuldad­es financeira­s e de reorganiza­ção de recursos humanos. Há mestres em Medicina que não têm acesso à especialid­ade porque o número de vagas é inferior ao número dos que saem das faculdades. Os indiferenc­iados já são mais de meio milhar e há migração de médicos para o privado. “Haverá uma altura de falha de médicos especialis­tas”, alerta. “Com a evolução tecnológic­a, com as necessidad­es técnicas que são necessária­s à área da saúde, é muito difícil uma gestão como a do Ministério da Saúde. O SNS, se compararmo­s com outros países, tem uma boa estrutura que não devíamos perder. Devíamos defendê-lo do melhor modo possível”, acrescenta.

Move-se numa tríade que considera perfeita, essencial para a sua vida como o ar que respira. Universida­de-trabalho, solidaried­ade-economia social, casa-família. É mãe de um médico oftalmolog­ista que gosta de tocar saxofone. E o que mudaria no mundo? “A ganância do poder pelo poder. Deteriora sociedades e torna aflitivas as vidas das pessoas. Há muitos atos de violência de países com excesso de tudo.” ●m

 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal