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Os últimos 270 habitantes do Aleixo

- TEXTO José Miguel Gaspar FOTOGRAFIA Leonel de Castro/Global Imagens

Viagem dos jornalista­s José Miguel Gaspar (texto) e Leonel de Castro (fotos) ao bairro municipal do Porto que aguarda demolição para dar a vez a oito blocos de luxo. Relatos, de carne e osso e ansiedade, do quotidiano de jovens e idosos, da degradação das três torres que restam, de elevadores que deixaram de funcionar. E droga, muita droga, com o crack em ascensão entre quem por lá compra, consome e gasta os dias.

É um cúmulo de problemas, quase uma overdose de perguntas: quando saem os 270 moradores? E para onde vão? E as torres vão ser demolidas? E quando é que isso vai acontecer? E o Fundo Imobiliári­o, por que não entregou ainda as dezenas de casas que tem de entregar? E os junkies sem-abrigo, para onde é que eles vão? A única a que todos sabem responder é esta: e há droga?

São os últimos habitantes e ali são todos feitos da mesma substância, carne e osso e ansiedade. Manuel Duarte e a mulher Maria Cândida, ele tem 67, ela 63 e em 2005 atroou-se num AVC, sobem juntos para o 13.º andar da sua casa na Torre 3 e vão demorar 15 minutos a subir porque a Maria Cândida demora mais do que os demais. O elevador avariou. Outra vez. Isto é um dia normal.

Joaquim Ferreira, 70 anos, Torre 2, 12.º andar, mora com a mulher Fernanda e um terrier chamado Torrete. Há três meses a polícia deitou-lhe a porta abaixo, a polícia dos peitos de plástico, assim, subitament­e um susto estampido muito alto na manhãzinha, a farejar sabe ele o quê. “Vieram à droga, pois, nada, não havia nada, claro, pediram muita desculpa, paraquedis­tas, os brutos”. E a porta ficou abananada da entrada e ele é que teve de a compor. E também foi um dia normal.

Julinho Silva, nome artístico Buster, 26 anos, um rapper a emergir no meio da Torre 1, conseguiu uma coisa praticamen­te impossível: durante uma tarde inteira de um dia de sol de junho eliminou completame­nte de ações e sinais de droga o pátio frontal e a entrada da torre da sua casa. Está tudo gravado em vídeo, está no Youtube, nada de droga, parecia outro bairro, todos vestidos de orgulho à frente da torre a cantar e a cabriolar gestos de hip-hop, música e motas de rodas no ar, o orgulho levantado, o Julinho estampado a sorrir. E esse dia foi tudo menos normal.

O CERCO IMOBILIÁRI­O E A FALTA DE CAPITAL

À meia-noite de um dia qualquer ou a qualquer hora do dia é perfeitame­nte possível e absolutame­nte seguro atravessar o Bairro do Aleixo, Porto ocidental, foz fluvial, por qualquer uma das três entradas, mas quem o fizer deve saber que vai ser abordado pelos homens da oferta. Uma ou várias vezes. Eles são a paisagem sempre lá, eles e os seus consumidor­es, e nada nos prepara para a violência sensorial do que vamos ver: um parque recreativo de toxicomaní­acos que transmutar­am o bairro num condomínio de chuto a céu aberto sem semelhante na cidade e no país.

Há dez anos debaixo de um plano político especial de investimen­to público-privado de demolição das cinco torres, evacuação e realocação camarária dos moradores, o processo demora e deixa

o bairro vexado num purgatório – um paraíso para quem quer comprar droga ou consumi-la logo ali; um inferno de teatro e putrefação viva que persiste nos olhos de quem lá mora. Passaram sete anos desde que Rui Rio, autarca maioritári­o de então, executou a ordem de demolição com explosivos da primeira torre de 65 casas e 13 andares e cinco anos quando foi arrasada a segunda. Houve alarme, protesto, manifestaç­ões, indignação, processos de tentativa de impediment­o cautelar, mágoa, resignação e tristeza, foi assim sucessivam­ente até ao culminar numa memória terrível: o som retumbado de um prédio a partir-se, degolado por dentro, os olhos dos moradores gelados de horror.

Desde que tudo começou já foram realojadas 300 famílias, mas 270 pessoas permanecem suspensas nos três prédios restantes. A demora é um problema de capital. O bairro está debaixo da regência especial do Fundo Imobiliári­o Invesurb, que quer no futuro erguer ali oito blocos de luxo para vender, mas a sociedade gestora, Gesfimo, da órbita do ex-BES, está paralisada e a nova gestão designada, Fund Box, entrada há dois anos com o novo acionista Mota Engil, só este mês obteve garantia bancária e aguarda ainda parecer da CMVM para seguir. Em dez anos, o Fundo falhou com cla-

mor (os outros acionistas são António Oliveira e a própria Câmara, além do ex-BES, dividindo seis milhões de euros de capital) e só conseguiu entregar 23 casas de várias dezenas que tem de reabilitar ou edificar.

Se olharmos para trás vemos que o bairro, inaugurado há 42 anos para realojar habitantes das colmeias do Barredo, na Ribeira do Porto, é um erro arquitetón­ico de conflitual­idade social em altura, sem varandas nem janelas grandes que virassem os habitantes para o exterior e para o cuidado coletivo do espaço comum. Como

o bairro está com ordem de extinção, as torres degradam-se, os elevadores avariam, os moradores assistem há anos ao abandono progressiv­o do Estado: há muito fechou a escola e o centro de dia, fechou o café do Caetano, esboroam-se os jardins, cresce o lixo daninho por todo o lado, a recolha é disruptiva, os prédios apresentam-se na sua pior condição de sempre, com fachadas em notícia de perigo de ruir.

UM CASO DE SAÚDE PÚBLICA

“O Aleixo é hoje uma tragédia que acontece a céu aberto”, repetiu Rui Moreira, o autarca independen­te que sucedeu ao social-democrata Rui Rio há cinco anos, cinco meses após a última demolição. Moreira, que em tempo recente visitou o bairro sem Imprensa a ver, viu a degradação, a mancha perpétua na saúde dos consumidor­es e colocou em marcha a saída urgente de moradores até março de 2019. Mas passou já mês e meio e não houve novos contactos da Domus Social, os moradores não sabem se as regras de saída são as mesmas, não sabem se terão três locais à escolha como tiveram os realojados antes deles. Os 270 moradores sairão para casas camarárias que vagam na cidade à média de uma por dia, transpondo na urgência os outros munícipes do Porto cuja lista de espera é superior a mil.

Há duas mudanças recentes a reportar: no último mês o bairro levou uma ceifada nas ervas e no lixo que atapetava as ruas – um mar de corpúsculo­s de plástico e metal dos kits dos consumidor­es que largam tudo no chão: seringas, ampolas, tampinhas, toalhetes de desinfetar manchados de sangue, parecem mapas de tesouro perdidos, cruzes que não levam a lado nenhum –, e ergueram-se cercas de arame para trajetos seguros à voltas das três torres, “galinheiro­s”, acusam os moradores, agora realmente cercados.

O problema da saúde pública foi menorizado, mas não desaparece só assim, além de que o lixo daninho já está outra vez a medrar. O problema só se resolve quando for arrumado outro maior: o que fazer aos 60 a 80 velhos consumidor­es duros (cocaína, heroína e crack são as drogas do pódio; o crack, que é base de cocaína e parece calcário ou açúcar sujo em cristal, é hoje a substância que mais preocupa porque está em ascensão) que compram, consomem e ficam por ali no bairro dias inteiros a repetir? Muitos são sem-abrigo, alguns pernoitam por lá, encolhidos nos cantinhos dos muros desmoronad­os, parecem desmaiados em cartões a desfazer, como o refluxo de uma

maré que se recusa a vazar. O caso já foi superiorme­nte anotado e tem motivado reuniões entre a Câmara e a Autoridade Regional de Saúde do Norte, que trabalham com as entidades no terreno que melhor dominam a situação. Além disso, reativou a discussão sobre a urgência das unidades de consumo assistido, vulgo salas de chuto, com o dossiê a aguardar agora deliberaçã­o e parecer da Assembleia Municipal do Porto.

“O Aleixo é hoje uma tragédia que acontece a céu aberto”, disse várias vezes Rui Moreira

NO TEATRO DA DEGRADAÇÃO

Mesmo que não queira, Manuel Duarte – que mora no Aleixo desde 1976 vindo da Viela do Buraco, na Ribeira, hoje são três, ele, a

mulher Maria Cândida e a filha que mora com eles, mas já foram 11, com mais dois filhos, mais cunhados, mais os sogros e os netos – anda há cinco anos para trás e para a frente aos papéis com a Domus Social, a empresa de habitação municipal do Porto que coordena o processo de evacuação. “Vá descansado para casa que em breve vai ser chamado para sair”, é esta a frase que mais vezes ouve do lado de lá do guiché. “Foram tantas que eu há muito que deixei de acreditar. Cinco anos?! Como é possível estar a pedir para sair de casa há cinco anos e ainda aqui estar, tendo eu a mulher como tenho nesta condição?”, pergunta Manuel incrédulo a vacilar, a dizer que também já fez dois bypasses ao coração. “Como é que querem que a gente ande aqui para cima e para baixo com 13 andares de escadas cada vez que queremos ir à rua?”.

Naquele dia, o elevador da Torre 3 tinha avariado outra vez. É um elevador novo e moderno da Schmitt, foi posto no verão , mas está parado no 1.º andar e não se vai mexer. Manuel conta sem se rir o que é que aconteceu. “Às vezes chove aqui dentro”, diz ele a ironizar sobre o episódio de terça à tarde quando uma vizinha resolveu lavar o pátio comum de um andar ou dois de cima de forma súbita e obstinadam­ente e pôs a mangueira a jorrar e a golfar. O Schmitt viu-se aguado, primei-

ro tremeu, depois tossiu e por fim parou. Chamou-se o técnico, o técnico veio, demorou, viu

o chuveiro dentro do elevador, abanou a cabeça, decretou dois dias de repouso ao Schmitt e foi-se embora a abanar a cabeça. “E nós que moramos lá em cima é que temos que alombar”, queixa-se o Manuel da desconside­ração. No dia a seguir, o Schmitt ainda inerte a secar, a mesma vizinha da aguada passa pelo elevador parado diz um palavrão e depois sai da torre a palavrear. “Parece que estão a gozar connosco.

É sempre a mesma merda com estes elevadores”, diz Manuel a reproduzir o comentário da vizinha sem uma única vez se rir.

É o meio da tarde, é uma tarde de sol do princípio de outubro e não está ninguém nos bancos de conversaçã­o que há nos pequenos pátios à entrada da rua do meio do bairro, um de cada lado de pedra debaixo das sombras estrelares das folhas dos plátanos altivos. Vão encher-se intermiten­tes de gente ao fim da tarde em conversas de vizinhas, mas são cada vez menos, dantes havia mais, e Maria Cândida, que voltou da fisioterap­ia que faz todos os dias desde que teve

o AVC, levanta-se do banco e prepara-se para continuar a ginástica, agora numa via-sacra de escadas a subir.

São 208 degraus e pelo menos o dobro de passos até lá acima para ela e Manuel aflige-se reservadam­ente de cara fechada a ver a mulher subir os lanços um passo de cada vez, dois pés em cada degrau, a mão do braço bom do lado do AVC sempre no corrimão, mas o outro braço e a outra perna do mesmo lado parecem esquecidos, o resto do corpo não os compreende, quer avançar, ela não tem culpa, demora-se a subir. E às vezes pára e sorri para a sua situação, mas só brevemente porque depois emudece para continuar a arfar e a escalar. Duarte, que fez sempre vida ali no bairro, trabalha desde os 12 anos, andou em tipografia­s, estojoaria­s, expositore­s, agora é vigilante de sonos noturnos na segurança do Douro Villa, um condomínio vizinho com casas 20 vezes mais caras que a sua, vê todos os dias o teatro da degradação da droga à sua porta. Ele é como os demais, uma pessoa comum obrigada a fazer coisas extraordin­árias: ver agulhas e espetados nas escadas logo pela manhã, que ele tem que enxotar; um ou outro junkie fugidiço que se meteu nos andares devolutos de cima para consumir e dormir, e que ele vai deportar dali em voz grossa; às vezes até limpa ele mesmo as pratas e tarecos de metal e plástico que os viciados deixam no chão porque ali há crianças. Não é coisa que se queira ver, nem de manhã nem à tarde, nem se estiver sol e houver vento maravilhos­o entre as árvo-

“Vá descansado para casa que em breve vai ser chamado para sair”, é a frase que mais vezes ouve do lado de lá do guiché há já cinco anos MANUEL DUARTE

res. Nem sequer à noite, porque os junkies estão sempre por ali, a garatujar, descampado­s, metidos nas suas tendinhas escondidas de cores precárias, com luzinhas a tremer na cabeça, a vaguear no escuro mar preto interior da noite, que, por acaso, ali nem é demasiado sombria, tem uma luz amável de amarelo sossegador.

Ele reage com perplexida­de à pergunta. “Não, não acredito no plano especial do presidente que diz que nos tira a todos daqui até março.” E depois a perplexida­de dá lugar à ansiedade. “Já imaginou o que isto nos faz, estarmos a dias ou semanas de mudar de casa, eu sei lá, e não fazermos a menor ideia onde vamos viver? Imagine lá se puder”, e depois a ansiedade dá lugar à melancolia e a cara de Manuel Duarte obscurece.

ALI NINGUÉM IGNORA O ESTIGMA E O IGNÓBIL

O orgulho e o valor do orgulho em cada um é um sentimento palpável na postura das pessoas do Aleixo. É um sentimento comum mas exalta-se, não se disfarça, usa-se por fora do peito. Ninguém ignora

o estigma da ignóbil droga, alguns fazem parte dele, muitos mais não, mas todos são levados nessa sombra, ceifados pela base no direito social da presunção da confiabili­dade que devemos ter uns perante os outros. Não é uma coisa de somenos, desconfiar de alguém só porque vem de um certo sítio de difamação, é isso o estigma e isso indigna. E magoa e inflama o orgulho e por isso o orgulho de pertencer ali às vezes é furioso, às vezes ressalta, crava-se na pele e permanece como uma tatuagem das torres enxertada nas costas de alguém. E salta para as paredes dos prédios, por fora e pelo interior recôndito, escadas acima até ao cimo dos 13 andares, todas as paredes estão escritas e rascunhada­s com franqueza crua e espichada. Na Torre 3 há mais declaraçõe­s de amor, desenhos infantis e paredes beges por grafar; na 2 há muitos tags eriçados sobre o amor postos de outra cor,

há mais declaraçõe­s emendadas a tinta diferente na parede ou riscadas a vermelho zangado; e na Torre 1 é tudo diferente porque as paredes dali estão endemicame­nte ocupadas por gente ou por vultos que saem ocultos das paredes de gente. São paredes vivas, é neorrealis­mo encardido, galhardia, prosápia, bazófia, insultos pretos a políticos, à bófia e aos cavicórneo­s, com choques frontais de cores, amores riscados e aquela exaltação do andamento, “Aleixo Sempre”, “Aleixo Zone”, “Xangai Aleixo”, “Cardinal”.

O EPISÓDIO DO ESTRONDO DA POLÍCIA

O bairro já não tem partes bonitas, só memórias e fantasmas de coisas que já não são. Joaquim Ferreira está ali a entardecer a juventude, olha pela janela do seu 12.º andar e vê o mesmo rio em que mergulhava quando era novo. Está agora mais à frente, ele já foi jovem, já foi comando indómito em Angola, já foi mais alto, já foi mais audaz, já saiu a escorrer do rio de mão dada com aquela que viria a ser a sua mulher. Ela também se lembra, a Fernanda, tem 67 anos, era quando mergulhava na Ribeira, está agora na sua sala onde entra o sol, ela tem o joelho inchado, dá passinhos pequeninos, senta-se e põe-se a ver desatenta a novela da SIC “Mar salgado”. Também ela está mais à frente na torrente do rio, do outro lado da sua vista é a igreja branca da Afurada, quando anoitecer a igreja vai acender, as luzes vão derreter no rio, rajadas, e depois vê a fileira do casario pitoresco

de cores variegadas e azulejos nítidos das casas dos pescadores. “Será que este vai ser o nosso último Natal aqui?”, interroga-se Joaquim a afagar as orelhas do Torrete, o seu cordeiro jack russell terrier, “não acredito que a gente saia já, então estamos há tantos anos para sair e não saímos e agora dizem de repente que há casas?”. Descrente, Joaquim evoca São Tomé e diz “só acredito quando vir, e digo mais, acredito quando tiver a chave na mão”. E depois diz da sua vontade: “Eu não estou à procura de casa, eles é que nos querem tirar daqui. Pois podem querer, mas se quiserem têm primeiro que tratar de nós. E depois”, continua ele ligeiramen­te agitado, o cão escapule-se para o regaço da novela da mulher, “vamos poder escolher para onde queremos ir ou vamos obrigados para algum sítio sem ver? É que se for assim não tem jeito, não tem jeito nenhum”.

A morar ali desde o início do bairro, em 1976, “a Torre 1 ainda nem estava completa, era só esqueleto, mas foi ocupada mesmo assim, tomada de assalto pela noite”, já passaram por aquela casa quatro filhas e dez netos do casal. Estão agora ali todos na parede, risonhos e a cores, a casa superlotad­a de retratos dos netos e das mães deles, até num passe-partout digital que passa fotos num mix em permanente aparecer, desaparece­r.

E Joaquim recorda aquele encontro vespertino em que acordou com estrondo e a casa estava cheia de polícias peitudos de capacete a querer espiolhar. Ele rediz as perguntas que lhe fez a polícia e repete as respostas que lhes deu: “Droga? Tenho, medicament­os da farmácia. Armas? É, facas da cozinha, estão ali. Dinheiro? Olhe, agora está mesmo a gozar comigo, é?”. E Joaquim diz a rir que a coisa não teve piada nenhuma: “É assim a nossa polícia de investigaç­ão, uma coboiada, primeiro arrombam a porta, só depois é que fazem as perguntas. É por sermos pobres? Não devia ser assim, pois não?”.

“E depois vamos poder escolher para onde queremos ir ou vamos obrigados para algum sítio sem ver? É que se for assim não tem jeito, não tem jeito nenhum” JOAQUIM FERREIRA

OS POLÍTICOS E A DEFRAUDAÇíO

Claro que na noite do dia do videoclipe do Julinho a vida real caiu ali como é normal e todos voltaram aos seus papéis sociais. São papéis de informalid­ade adestrada, da burocracia da rua que dá saídas e rendimento­s reais, conquanto ilegais, a quem quiser ou precisar. Ele mora no epicentro desse comércio, a Torre 1 que está sempre a chamejar de compradore­s a entrar, de capeadores, recetores, entregador­es e vigias, vozes ocultas a apregoar códigos no ar – “é branca”, “é castanha”, “Holanda”, “Maradona”, “Bolicao” – e Julinho que é imune, pois não fuma, não bebe, não se droga, não tem vícios invisíveis, diz que nunca quererá sair dali. “Isto é o meu berço e o meu enterro, quem me dera que fosse assim.” É lírico, Julinho, “adoro palavras desde pequeno, são as minhas balas, gosto mesmo é de escrever e disparar”, diz ele e essa é a sua forma de resistênci­a e de glorificaç­ão. Mas aquilo que ele fez naquela tarde de junho foi glorioso, gravou ali o vídeo de “Aleixo II”, o single da sua nova mixtape “Sangue azul”, aquela torre vil pareceu um prédio normal, ou quase, a flamejar de juventude a cantar e a dançar, com imagens aéreas solares, fumos festivos no terraço do 13.º andar, cá em baixo coreografi­as de bboys e gestos da cultura hip-hop cumpridos com grandeza de ânimo, o Julinho a comandar tudo. É uma imagem potente para quem conhece o ambiente habitual daquela torre, a torre do andamento que nunca pára, cheia de gestos furtivos do entra-e-sai, madrugada fora até ao nascente, noite e dia banca aberta, nem no Natal pode fechar.

É esse o poder libertador da música e da cultura, parece querer dizer Julinho Buster – e agora ele aponta a ironia do nome Buster, de Blockbuste­r, um nome que está em extinção como os blocos da casa dele –, que mora no 7.º andar da Torre 1 desde que nasceu há 26 anos. “É também a minha forma de resistir num bairro, o meu bairro, que sofreu sempre estigmas sociais, sobretudo o estigma da droga”, diz ele, como na canção do clipe de três minutos e meio em que faz o relato e louvor do Aleixo e descreve aquilo que está a viver: “A morte respira-me na cara/ enquanto me oferece uma chapada/ mas eu agarro-me à vida/ de cabeça levantada” ou mais à frente “mas eu falo do que eu vivo/ do que eu sinto/ eu não minto/ eu recito sem papas na língua/ sobre línguas depravadas”.

É um caso muito singular, Julinho, o rapper, uma flor correta a nascer no cisco, e a sua autenticid­ade merece singrar; nas suas canções – procurar “Buster” no Youtube – ele relata-se muito para lá daquilo que vê e que vive, abre o peito, confessa-se, diz sem peias que não tem mãe, foi consumida, que o pai nunca lhe liga, que só o vê em videochama­da e se por acaso for Natal.

“Não sou segurament­e louco por querer transforma­r o Aleixo em música ou literatura”, argumentar­á Julinho agora de pé à frente do microcafé dos balneários do ringue de futebol do bairro, o único equipament­o ainda a funcionar, as mãos metidas nas redes bambas do campo de betão cracado que fica atrás da Torre 1, já não há ali competiçõe­s organizada­s, só espontanei­dade, desejo e às vezes desatino. “Eu não manjo nada de política, tás a ver?”, diz Julinho a falar como um rapper a argumentar com as mãos, “mas os políticos enganaram-nos, vieram cá com as suas campanhas, diziam que eram por nós, que isto não ia abaixo, mais isto, mais aquilo, eu lembro-me, eu era novo mas eu lembro-me, toda a gente aqui se lembra, e depois quando se apanharam no poleiro, o poleiro do nosso voto, viram-se contra nós e mandam demolir o bairro à traição”, diz Julinho, a falar de Rui Rio. “Não sou segurament­e louco, mas quero aqui ficar para sempre, cresci aqui, sou daqui, estes são os meus amigos, a minha família é isto aqui”, diz Julinho a abrir os braços. Talvez não tenha outro remédio que não seja olhar de frente, sempre de frente, e efabular aquilo, mas dizendo sempre a verdade, talvez não tenha outro remédio que seja não ter medo de abrir os olhos mesmo que à volta dele esteja tudo escuro

e a enegrecer.●

“Eu lembro-me, eu era novo, mas eu lembro-me, toda a gente aqui se lembra, e depois quando se apanharam no poleiro, o poleiro do nosso voto, viram-se contra nós e mandam demolir o bairro à traição” JULINHO

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M Joaquim Ferreira, a mulher, Fernanda, e o cão Torrete na sala de estar de casa onde abundam fotos dos netos
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7 Manuel Duarte e a mulher, Maria Cândida, moram no 13.º andar
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M O orgulho de pertencer ali é furioso e às vezes ressalta. No bairro há um microcafé metido atrás da Torre 1
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N Fernanda e Joaquim no interior da Torre 2 do bairro do Aleixo, onde moram desde os anos 1970
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M Julinho Silva fotografad­o numa janela da Torre 1, o prédio onde mora desde que nasceu há 26 anos

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