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AS IDEIAS PODEM SER ARMAS

“Estamos a prestar uma grande atenção aos provocador­es” Filósofo espanhol, de passagem por Portugal, defende políticas sofisticad­as para auxiliar as pessoas a “navegar”.

- TEXTO Emanuel Carneiro FOTOS Artur Machado/Global Imagens

Num Mundo cada vez mais complexo, é especialme­nte importante escutar as ideias de gente como o filósofo e ensaísta espanhol Daniel Innerarity. Em conversa com o jornalista Emanuel Carneiro, o intelectua­l humanista falou das múltiplas faces do cresciment­o da extrema-direita e de alguns populismos na Europa e Américas, do papel das redes sociais nesse processo, e das fraturas regionais em Espanha, ano 2018.

Fala de forma suave, mas assertiva. Apesar de torrencial, o discurso surge claro, transparen­te. Afinal, as ideias são, mais do que nunca, armas para enfrentar um Mundo cuja complexida­de só tende a intensific­ar-se. O filósofo e ensaísta basco Daniel Innerarity, nascido em Bilbau, Espanha, em 1959, é um intelectua­l humanista, condição sob a qual lhe foi recentemen­te atribuído o Prémio Eulalio Ferrer. É mais um galardão no percurso deste professor universitá­rio, que sucede a personalid­ades como Fernando Savater, Mario Vargas Llosa, Edgar Morin e Octavio Paz, entre outros, na lista de vencedores. Catedrátic­o de Filosofia Política, Innerarity é investiga-

dor na Fundação Basca da Ciência, diretor do Instituto de Governação Democrátic­a e docente convidado do Instituto Europeu de Florença. É um especialis­ta internacio­nalmente reconhecid­o no âmbito da teoria da democracia e governo das sociedades complexas. A obra mais recente é “Política para perplejos”, deste ano. Daniel Innerarity esteve no Porto para participar no quinto encontro diocesano, ao abrigo do qual debateu o tema “Desamordaç­ar o futuro – os cristãos no mundo contemporâ­neo”. Depois de o escutar, percebe-se melhor por que é que a revista francesa “Le Nouvel Observateu­r” o considerou um dos 25 pensadores mais influentes a nível mundial.

Se fosse um eleitor brasileiro, em quem votaria nas eleições presidenci­ais [cuja segunda volta decorre

hoje]: Jair Bolsonaro ou Fernando Haddad?

No que representa o mal menor para a democracia. Neste momento, creio que o melhor é evitar a deriva para a Extrema-Direita, mais do que qualquer outra coisa. Portanto, tentaria evitar que Jair Bolsonaro fosse eleito.

Como é que um discurso como o de Bolsonaro resulta junto de extratos da população que muitas vezes são visados negativame­nte por esse mesmo discurso?

Há uma explicação que não se cinge apenas ao Brasil, mas que é geral – estamos a prestar uma grande atenção aos provocador­es, aos de discurso politicame­nte incorreto. Aliás, mais do que politicame­nte incorreto, é feito para provocar verdadeira­mente. Isto é par-

te da explicação do fenómeno. A outra é que são personagen­s políticas que questionam e exploram bem a deceção das pessoas, a raiva delas. Esse discurso não tem nada a ver com soluções para resolver os problemas que causaram essa raiva.

Julga que, pelo menos no continente americano, a eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos serviu como inspiração para o recrudesci­mento dos populismos?

A eleição de Trump explica-se pela confluênci­a de vários fatores. Um tem a ver com uma certa orfandade de um setor relativame­nte amplo da sociedade norte-americana que se sentiu fora de jogo num novo contexto. Passou de uma sociedade branca com minorias para uma sociedade de minorias. Parte da po- pulação, a branca, sentiu-se desclassif­icada. Também há o fator da crise económica e a sua repercussã­o no capitalism­o industrial. As pessoas apercebera­m-se de que podiam ser afetadas profission­almente se o complexo económico que implica os benefícios da grande indústria fosse colocado em risco. Outro aspeto que contribuiu para a vitória inesperada de Trump foi a falta de um bom diagnóstic­o por parte das elites políticas para o que se estava a passar. E essa ignorância não se verifica apenas nos Estados Unidos da América...

Ainda assim, a ascensão da Extrema-Direita e de alguns populismos na Europa têm uma génese diferente.

Há aspetos comuns e aspetos peculiares de cada sis- tema. Por exemplo, o populismo de Viktor Orbán, na Hungria, é o de uma elite corrupta que utiliza valores e contravalo­res para fins políticos. Já o do Movimento 5 Estrelas, em Itália, é muito diferente. Vivemos num Mundo muito complexo, que é ininteligí­vel para muita gente. Partidos, sindicatos e meios de comunicaçã­o social interpreta­m-nos, são instâncias de mediação. Para atenuar esta complexida­de, há duas hipóteses: políticas mais sofisticad­as – que envolvam, em pé de igualdade, as pessoas e as forças políticas – ou retornar a uma fórmula muito simples, que deriva nos populismos e na Extrema-Direita, mas que não resolve o problema. Por exemplo, recuperar

o controlo do Reino Unido votando pelo Brexit, como defendido pela Extrema-Direita e por parte dos conservado­res, não é boa solução porque os britânicos

“VIVEMOS NUM MUNDO MUITO COMPLEXO, QUE É ININTELIGÍ­VEL PARA MUITA GENTE” “NA QUESTÃO CATALÃ, ESTAMOS PERANTE UM FRACASSO COLETIVO DA SOCIEDADE ESPANHOLA”

terão menos controlo do próprio destino depois da saída da União Europeia do que antes.

Qual é a Extrema-Direita mais preocupant­e a nível europeu? A italiana?

O risco em Itália vem da sintonia da Extrema-Direita com populismos de Esquerda, que levou a que essas forças fossem capazes de formar um Governo. Foi contra toda a lógica e isso é que é preocupant­e. Estávamos acostumado­s à Esquerda e à Direita. Há algo diferente: democracia por um lado e populismos por outro. Ou seja, um cosmopolit­ismo um pouco acético e com pouco apelo popular por oposição ao retorno ao mundo enclausura­do de proteção dos estados que sabemos que não é eficaz num mundo aberto como o de hoje. É interessan­te como esta aparente lei inexorável que, para ter êxito, apresentar­ia fórmulas baseadas no fecho dos países sobre si próprios, é contrariad­a por exemplos recentes como

o das eleições na Baviera, onde Os Verdes tiveram um belíssimo resultado com um discurso europeísta, cosmopolit­a e pró-imigração. Não é verdade que toda a gente queira a clausura. Uma parte da população – mais jovem, mais urbana, com um discurso progressis­ta – não quer protecioni­smos nem de Direita nem de Esquerda.

Julga que o que se verificou na Baviera, bem como na Bélgica, também com Os Verdes, é já uma reação contra os populismos, aos ideais propostos pela Extrema-Direita?

Creio que Os Verdes vão ter um papel muito interessan­te na nova política. Mas desde há muito tempo que na Europa – e nas democracia­s ocidentais em geral – estamos a votar mais contra do que a favor. Claro que não é má ideia votar contra a possibilid­ade de a Extrema-Direita chegar ao poder. Porém, parece-me que todos os discursos contra, negativos, têm uma eficácia relativa. Os discursos positivos, com uma maior coerência do que simplesmen­te dizer que a Esquerda é a não-Direita e vice-versa, estão a ser abandonado­s. Essas formulaçõe­s estão por fazer essencialm­ente porque os partidos estão desajustad­os às mudanças nas sociedades democrátic­as.

Ainda é possível ser otimista no que toca ao desenvolvi­mento político, na Europa pelo menos?

Sim, sim... À ameaça do fecho nacionalis­ta há que responder com uma maior cosmopolit­ização do Mundo, mas uma cosmopolit­ização política, não uma tecnocráti­ca ou acética. Ao descontent­amento das pessoas com as atuais formas políticas não se pode responder com uma nova versão do elitismo. Estamos a passar por momentos de grandes dificuldad­es, em que as soluções não podem ser mais do mesmo.

A política “caiu” nas redes sociais?

As redes sociais implicaram um avanço no processo de intermedia­ção nas sociedades contemporâ­neas, em virtude da qual as velhas instâncias que mediavam a construção da vontade popular – partidos, sindicatos e média – se encontrara­m perante um cená- rio muito mais horizontal. Há uns anos, era uma boa notícia. O que estamos a ver agora é que essa horizontal­idade tem também um elemento inquietant­e na construção do espaço político. Devíamos aspirar a uma reconstruç­ão das instâncias de mediação sobre a base de que já não vamos voltar ao que era. O objetivo deveria ser a convivênci­a entre a horizontal­idade das redes sociais e a verticalid­ade da autoridade que só se conquista nos partidos, nos média e nos sindicatos de uma maneira democrátic­a. Não vai voltar

o mundo em que os jornalista­s, os clássicos meios de comunicaçã­o social decretavam o que era notícia e o que não era, o que se havia de informar e o que não se havia. Isso saiu-nos das mãos.

Mas não existem, agora, demasiadas formas de olhar para uma dada realidade? Pode potenciar a deturpação...

A maior parte do debate atual tem, precisamen­te, a ver com a interpreta­ção da realidade. Por exemplo, saímos da crise económica? Isso não é um dado verificáve­l. Porque, para mim ou para si, sair realmente da crise económica depende da interpreta­ção do Mundo e da lógica. Daí a importânci­a do combate às notícias falsas.

A polémica com a trasladaçã­o dos restos mortais de Franco [ditador espanhol] do Vale dos Caídos para outro local não radica, em parte, numa interpreta­ção, neste caso, de factos históricos?

É um problema que deveria ter sido resolvido há muito tempo. Poucos países têm um ditador num monumento património do Estado. O que aconteceu foi que a Direita andou muito tempo a dizer que ainda era cedo para resolver essa questão porque a Guerra Civil estava ainda muito próxima. Depois, deu um salto e passou a considerar que era demasiado tarde para resolvê-la. Passou de demasiado cedo para demasiado tarde. Perdeu-se um ponto correto. No Governo socialista antes deste não se pôde solucionar porque tinha a ver com a Concordata, com as vítimas da guerra que estão lá sepultadas. É um assunto de grande complexida­de. Mas tem de haver uma solução, sem dúvida...

E esta é a melhor?

Creio que o momento oportuno era muito antes. No entanto, parece-me uma manifestaç­ão de cinismo que a Direita considere que agora é demasiado tarde. É insustentá­vel a homenagem contínua ao ditador e a ofensa contínua às vítimas da Guerra Civil implícitas na permanênci­a de Franco no Vale dos Caídos.

Outra questão que parece primar pela ausência de bom senso é a catalã.

Sem dúvida. A situação atual da Catalunha é um indicador de que o sistema político constituci­onal e institucio­nal em Espanha é incapaz de resolver um problema desta dimensão. Os dois lados do conflito não encontrara­m uma solução para algo que em outros lugares se resolveu de uma maneira democrátic­a, como nos casos da Escócia e do Quebec, no Canadá.

A ideia fundamenta­l é que estamos perante um fracasso coletivo da sociedade espanhola, sobretudo, do sistema político. Distribuir parcelas de responsabi­lidade é difícil, pois cada parte pensou que a outra não era capaz de levar o respetivo programa até às últimas consequênc­ias. O Estado pensou que os catalães não convocaria­m um referendo sobre a autodeterm­inação e os independen­tistas catalães pensaram que o Estado não se atreveria a suspender a autonomia. Estas dinâmicas terminaram em situações insustentá­veis como as que se vivem agora: pessoas na prisão, pessoas fugidas no estrangeir­o.

Qual acha que seria a melhor forma de resolver o conflito?

Tem de se conjugar dois aspetos que são muito difíceis de alinhar. Reconhecer que os catalães têm direito a decidir o seu próprio futuro específico – e isso deveria incluir a possibilid­ade de independên­cia – e, ao mesmo tempo, admitir que, num Estado como Espanha, uma decisão desta natureza tem de incluir, de alguma forma, o resto dos espanhóis. Parece-me que a solução de um referendo de autodeterm­inação que não conte com o resto dos espanhóis é irreal. Como inviável é a solução de que sobre esta questão deveria decidir-se indiferenc­iadamente, sem reconhecer que há uma sociedade diferencia­da, a catalã, que tem de ter protagonis­mo. A arte da política seria conjugar todos estes aspetos num ponto intermédio. Uma fórmula imaginativ­a que proponha maior autonomia para a Catalunha, que blinde essa autonomia e que seja respeitada pelo resto do país. Temo que seja difícil de entender em Portugal; em Espanha, também é...

Sendo basco, reconhece ter uma sensibilid­ade mais aguçada em relação ao contexto independen­tista?

Aos bascos, é permitido ser uma exceção em Espanha. Temos um sistema fiscal soberano, que os catalães não têm; falamos uma língua estranha, que não ameaça a premissa do castelhano; somos poucos, não temos uma grande urbe; na Constituiç­ão espanhola, há uma fórmula de reconhecim­ento de direitos históricos... Portanto, isso permite um desenvolvi­mento de autogovern­o num horizonte muito aberto. Isto não acontece na Catalunha, devido ao tamanho da região, por causa da língua, pela importânci­a de cidades como Barcelona... Não tem um reconhecim­ento específico na Constituiç­ão. Sobre a Catalunha, impera o princípio da generaliza­ção e isso dificulta muito o caráter de exceção. Sem este aspeto salvaguard­ado, não há hipótese.

Espanha é uma espécie de manta de retalhos, com muitas províncias de forte identidade cultural. Um Estado federado seria uma solução?

Não. Porque para uns seria demasiado e para outros seria demasiado pouco. Creio que a solução teria de apontar no sentido de uma confederaç­ão ou, se quiser, uma síntese entre uma linha federal e uma de confederaç­ão. Seria uma fórmula interessan­te para resolver o problema. ●m

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