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SOMOS A MATÉRIA- -PRIMA DA CIÊNCIA
Os seus corpos não irão para debaixo da terra. Serão estudados por alunos, professores, médicos. São dádivas em nome da evolução da ciência. Cinco histórias de quem dá, em vida, os restos mortais e espera que, na morte, essa última vontade seja respeitada
A decisão está tomada, os papéis assinados. A jornalista Sara Dias Oliveira ouviu as razões de pessoas que doaram o corpo à Medicina. São histórias de quem já sabe como será a sua vida depois da morte.
Adília Santos já sabe como será a sua vida depois da morte. O seu corpo irá para a Faculdade de Medicina da Universidade do Porto para que seja estudado o tempo que for necessário. Depois será cremada e as cinzas serão lançadas num jardim do cemitério de Agramonte, no Porto. A 29 de agosto deste ano, formalizou a vontade de doar o corpo à medicina juntamente com a irmã mais velha, Maria Adelina, de 67 anos. Trataram de tudo pessoalmente, foram à faculdade, ainda andaram perdidas pelos corredores. Quando saíram, a irmã partilhou uma certeza que não esquece: “Vamos voltar à escola e depois iremos para um jardim. Não poderíamos ter melhor fim, pois não?”.
Aos 60 anos, a professora de Português e Francês, de Bragança, sente que cumpriu o seu dever. “Devo isso a uma vasta equipa médica que me tem acompanhado. Tenho essa obrigação, é um orgulho e uma missão, é uma felicidade que nem o jackpot me poderia dar”, confessa. Há cinco anos que não dá aulas por incapacidade com um diagnóstico de mielofibrose, uma doença no sangue. Tem um baço e um fígado maiores do que o habitual, barriga inchada, já teve um enfarte no intestino, várias tromboses cerebrais. É seguida na hematologia oncológica do Hospital de Santo António, no Porto. “O meu corpo está todo esfrangalhado – desculpe-me a expressão mas é o que costumo dizer à minha médica – e farei tudo para que possam descobrir problemas como o meu ou outros.”
Primeiro falou com o marido e a filha, que respeitam a decisão e garantem cumpri-la, depois comunicou a doação à restante família durante um jantar. “Todos aceitaram de bom grado.”
Os problemas de saúde começaram a manifestar-se há 32 anos e há 25 perdeu o irmão mais novo, tenente da Força Aérea, que morreu com um cancro raro. António Augusto Martins aceitou ser cobaia da comunidade médica que queria investigar a sua doença, com apenas cinco casos detetados no mundo. Autorizou que filmassem cirurgias a que foi submetido, chegou a ser levado para Inglaterra para ser estudado. “Fizeram de tudo, mas era um cancro muito raro.” Acabou por não resistir e morreu com 30 anos. “A partir desse momento, fiquei sempre com isso no meu pensamento: quero ser útil à ciência por mim e pelo meu irmão.” Adília não vai mudar de opinião. “É assim que quero e fico muito feliz por doar o meu cor- po à ciência.” Uma amiga já lhe perguntou onde é que iria colocar flores. “Podes mandá-las agora, em vida”, respondeu-lhe.
Liliana Costelha também não quer funeral, nem flores. Guarda o papel da doação do corpo na pasta dos documentos, junto ao passaporte, e soube dessa possibilidade pelo pai, há seis meses, quando ele lhe pediu para ser o familiar de contacto no formulário. Primeiro ficou admirada, depois não hesitou. “A morte é a única certeza que temos, porquê complicar? Tenho uma posição atípica em relação à morte, aos velórios e aos dramas que as famílias vivem. Fazer sala e socializar junto a um corpo morto faz-me confusão, é um ritual que abolia. Não preciso de ir ao cemitério pôr flores para me lembrar das pessoas.”
Liliana, 42 anos, consultora imobiliária, licenciada em Gestão de Marketing, natural da Maia, é uma mulher determinada. Os momentos que viveu com al-
gumas amigas com doenças terminais, que acabaram por falecer, acrescentaram-lhe novas perspetivas. “Lido com a morte de uma forma muito natural, enquanto cá estamos vale a pena aproveitar todos os momentos.”
Há mais uma razão. As suas imperfeições internas podem ajudar a ciência. Uma costela cervical a mais, um pâncreas pouco habitual, dividido a meio, hemangiomas no fígado, uma espécie de varizes. “Anatomicamente sou diferente, poderei ser uma mais-valia para os futuros médicos”, diz. E um corpo quando morre não tem de ir para debaixo da terra. “Os médicos devem ter matéria-prima. Se ninguém doar, como vão estudar? Depois de morta vou ser útil para alguma coisa.” Falou com o marido, com os pais e, em breve, falará sobre o assunto com os filhos, ainda menores.
Afonso Neves, 36 anos, professor na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, quer que a sua última vontade seja cumprida à risca e não dá hipóteses. Em setembro, tratou da documentação para doar o corpo à Faculdade de Medicina do Porto e pouco depois reforçou a decisão no testamento vital, incluindo uma cláusula em que deixa escrito que não quer cerimónias fúnebres, especialmente religiosas. Entregou cópias à esposa, à mãe, ao pai e ao irmão. Não quer desculpas, mesmo depois de já cá não estar, porque sabe que há famílias que não respeitam a vontade dos doadores e não avisam a faculdade para a recolha do corpo. “Vamos morrer. Ponto. Será que o meu corpo pode ser útil debaixo da terra? Não.” Quer, portanto, que o corpo seja útil à medicina, não vê sentido em preservar um morto num caixão. “Sempre
achei as cerimónias fúnebres um desperdício de espaço e de recursos”, afirma.
Afonso, licenciado em Ciências do Desporto, doutorado e pós-doutorado na área, é curioso e tem noção do que lhe vão fazer depois de morto. Está a terminar o curso de especialização em Dissecção Anatómica no preciso local para onde o seu corpo será levado depois de morrer. “O curso é excecional, de uma qualidade elevadíssima”, refere. E salienta a troca de experiências, as inúmeras variações anatómicas que teve oportunidade de ver, as assimetrias internas e externas dos corpos. Conhecimentos de anatomia que vai usando nas aulas, sobretudo quando se cruzam com questões de preparação física. Afonso não é religioso. Leu a Bíblia e o Corão do início ao fim, com anotações a acompanhar as leituras, não pensa na morte mas não esquece que ela não tem hora marcada, fez as pazes com essa questão há muito tempo, e garante que é fácil viver assim porque sabe que tem de aproveitar a vida.
“O corpo é apenas um invólucro”
Carlos Campelo começou por decidir que não haveria de ser enterrado. De vez em quando, em miúdo, ficava agoniado com a terrível e asfixiante visão de que podia acordar debaixo da terra depois de morrer. Isso passou com o tempo. Resolveu que queria ser cremado e quer que o seu corpo, depois de morto, seja útil de alguma maneira. Pensou no assunto durante um bom tempo e há cinco meses formalizou a doação do corpo. “Cada um de nós pode ser um contributo importante para concluir a peça de um puzzle.” Tem 42 anos, é técnico de saúde no Hospital de São
João, no Porto, é natural de Lamego, está orgulhoso da decisão. E não vai mudar de ideias.
Os dias passados em ambiente hospitalar, as autópsias a que já assistiu, o trabalho em laboratório, a imensa curiosidade perante o desconhecido, acabam por moldar-lhe o pensamento e a escolha de, em vida, deixar escrito o que quer que lhe façam depois de morto. “Não estou muito preocupado com isso, nunca se sabe o que poderão descobrir, temos tanta coisa escondida. Em dois corpos da mesma idade, irão encontrar centenas ou milhares de coisas diferentes lá dentro”, comenta. Há tanto por saber, tanto por descobrir, e a ciência constrói-se dia a dia, passo a passo, descoberta a descoberta. “É importante sabermos sempre mais sobre o que não conhecemos.” Sempre gostou de pesquisar, de olhar, de mexer, de compreender o que se passa, de questionar. “O meu corpo pode ser útil depois de morto.”
Foi educado na religião católica que não teve qualquer influência na sua doação. Não pensa na morte, mas sabe que ela pode chegar a qualquer momento. “Ainda sou muito novo para morrer, mas para morrer não há idade.” A realidade de todos os dias confirma-lhe que o tempo é efémero e que a morte não tem consideração pela ordem natural da vida. “A vida é mesmo assim, para morrer tanto vale ter 20 anos ou 70.” E a morte, na sua perspetiva, é necessária. “Se fôssemos sempre novos, se tivéssemos sempre força, se fôssemos sempre autónomos... mas não, o nosso corpo vai perdendo as capacidades motoras e mentais, e então a morte é necessária.”
Joana Gil tem 28 anos, é farmacêutica, mora em Carcavelos com a avó Piedade, de 72 anos, é católi-
ca, acredita em Deus. Há dois anos, com 26, tratou da papelada e doou o corpo à Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. “A minha avó tomou essa decisão e decidi fazer a mesma coisa, nem sabia que em Portugal isso era possível.” E o assunto ficou arrumado na cabeça. “Decidi doar o meu corpo para evitar custos à família que considero desnecessários com enterros e funerais e porque é importante o desenvolvimento da ciência”, explica. “Depois, nunca se sabe quando vai acontecer, é uma questão que já está tratada e não tenho de pensar mais nisso”, acrescenta de forma pragmática. Co- municou aos pais e aos avós que respeitam a opção que ainda não foi tema de conversa com os amigos. Não calhou. “Na nossa idade, não se fala muito nesses assuntos, mas penso que aceitarão com naturalidade, temos uma mentalidade um bocadinho mais aberta”, considera.
Contribuir para a investigação científica é a razão maior e mexerem no seu corpo não lhe faz confusão. “Podemos contribuir para novas descobertas. O corpo é apenas um invólucro, não me causa impressão que depois de morta alguém mexa nele. Depois da morte, deixa de ter importância, ninguém vai ficar ofendido por o corpo ser esventrado e aberto”, defende. Uma coisa é o corpo, outra é a alma ou uma consciência que acredita que se libertará da parte física depois da morte. “O que acontecerá depois, não faço a mínima ideia.” Mas de uma coisa tem a certeza. O
seu corpo será útil à ciência. ●