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Aprender nos mortos a cuidar dos vivos

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Ésegunda-feira de manhã e os alunos da Faculdade de Medicina da Universida­de do Porto estão de volta de vários corpos. Têm luvas e batas brancas. Não há cheiros, não há máscaras. É uma aula de anatomia sobre a parte locomotora. “E isto é o quê? Como se chama? Estão a ver estas fibras? A apófise espinhosa é grande, não é?” De pinça na mão, a professora Dulce Madeira, diretora da unidade de Anatomia, faz perguntas sobre peças de diferentes cadáveres que foram doados em vida e que agora estão à disposição da ciência. Sem filtros. Tal como foram, cada um com a sua própria história. Velhos e novos, saudáveis e doentes, magros e gordos, autopsiado­s ou não. A causa da morte não é importante.

“Não há dois cadáveres iguais, nenhum fémur é igual ao outro. Usamos as mãos para identifica­r o que é, identifica­r estruturas independen­temente do formato. Os alunos aprendem a olhar e a ver, a interpreta­r o que ali está, desenvolve­m a capacidade de raciocínio que é fundamenta­l para a prática clínica”, destaca. E não há nada melhor do que o original. “Não temos melhor livro do que um cadáver”, acrescenta.

Os alunos olham, perguntam, tiram dúvidas, consultam anotações dos cadernos. Depois da teoria, a prática, a possibilid­ade de tocar, de ver um corpo por dentro. “Termos cadáveres disponívei­s no teatro anatómico é muito diferente do que termos próteses

ou peças artificiai­s. Ajuda-nos muito, prepara-nos melhor para o futuro”, salienta Francisco Girão, aluno do 2. ano de Medicina, que percebe o que tem à frente. “Já foi uma pessoa que quis doar o seu corpo, contribuir para a evolução da ciência, e confiou em nós para tratarmos com todo o respeito o que nos deixou.” Leonardo Araújo Andrade, aluno do 4. ano, concorda. “Alguém que entrega o seu primeiro e último bem está a dar uma contribuiç­ão muito grande para que continuemo­s a investigar para além da morte. São anónimos que ficam na nossa memória pelo contributo que dão.” E ter um corpo numa aula faz toda a diferença. “A oportunida­de de vermos a três dimensões é muito melhor do que um registo num livro ou num atlas.”

Os corpos doados estão ao dispor de alunos, professore­s, médicos. Há pedidos de especialis­tas que querem rever algumas partes de anatomia antes de uma cirurgia mais complexa. E essas dádivas não são apenas lembradas nas aulas, mas também numa cerimónia emotiva. A 23 de novembro, a faculdade faz, pela terceira vez, uma homenagem à doação cadavérica, um agradecime­nto aos doadores e familiares, no Serenarium do cemitério de Agramonte, espaço verde cedido pela Câmara do Porto, onde são depositada­s as cinzas dos dadores. “As pessoas são de uma generosida­de imensa, ao doarem o corpo estão a ajudar médicos a compreende­rem melhor a ciên-

cia”, sublinha Dulce Madeira.●

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