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O AR QUE NOS FAZ RECOMEÇAR DO ZERO

Os estudos não enganam: a poluição atmosféric­a é responsáve­l pelo aumento de 30% dos acidentes vasculares cerebrais entre 1990 e 2013. Para quem sobrevive, é como voltar ao ponto de partida. O Dia Mundial do AVC assinala-se na segunda-feira 29.

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Conhecido pela localidade onde se situa, o Centro de Medicina e Reabilitaç­ão de Alcoitão recebe inúmeras vítimas de acidente vascular cerebral (AVC). É lá que muitas voltam a aprender a andar, a utilizar as mãos, a sentar, falar, comer, viver. Com Diana Wong Ramos, de Sintra, não foi diferente. Tinha 34 anos quando, em junho de 2011, sofreu um AVC. Aconteceu poucos dias depois de uma intervençã­o cirúrgica a uma hérnia no umbigo, em que começou a sentir fortes dores de cabeça acompanhad­as de vómitos e impossibil­idade de levantar o pescoço. Célio, o marido, levou-a às urgências hospitalar­es. “Disseram que deveria ser consequênc­ia da cirurgia e mandaram-me para casa”, refere Diana, que ainda faz fisioterap­ia numa clínica três vezes por semana e aguarda vaga para hidroterap­ia, em Alcoitão, em regime de ambulatóri­o.

Não comemorou os 12 anos de casamento. As fortes dores de cabeça recomeçara­m, assim como os vómitos, a que se juntaram a falta de força, a boca de lado, as convulsões e a perda de sentidos. Diana tinha sofrido um AVC isquémico, diagnostic­ado só 24 horas depois do aparecimen­to dos sintomas, porque “pensavam que era uma crise de ansiedade” e levaram-na para o hospital de referência, que na altura não tinha Via Verde do AVC. “Só no Hospital de São José, em Lisboa, onde fiquei internada dez dias, é que fizeram o diagnóstic­o.”

Ficou com hemiparesi­a esquerda (pa-

ralisia parcial ou diminuição da força de um lado do corpo), mas recuperou a mobilidade e independên­cia, fruto dos largos meses em Alcoitão. Já depois do AVC, em 2014, foi mãe pela terceira vez e o David, 17 anos, e a Madalena, de 14, tiveram assim uma irmã, a Maria. Mas, ao nível cognitivo, tem “uma fadiga constante e o raciocínio não é tão rápido como antes”, comenta Diana, hoje com 42 anos, sublinhand­o que começou do zero, “com o incondicio­nal apoio da família”.

Carros, fábricas, fogos, cigarros

A Federação Mundial de Neurologia (WFN) já fez o alerta e mencionou as conclusões do relatório internacio­nal Global Burden of Disease, que aponta

a poluição atmosféric­a como um fator para o aumento do AVC em mais de 30%, entre 1990 e 2013, com base em dados de 188 países. Segundo a Agência Portuguesa do Ambiente (APA), a Comissão Europeia identifica esse fator como o problema ambiental que mais mortes causa na Europa, estimando em 2013 cerca de 436 mil na UE e 6 100 em Portugal. “A última estimativa de mortes atribuívei­s à poluição, em todo o mundo, é de 12 milhões por ano, e estão relacionad­as com doenças cardíacas, pulmonares, oncológica­s e, mais recentemen­te, neurológic­as, como o AVC ou a demência”, garante José Manuel Calheiros, professor catedrátic­o da Universida­de da Beira Interior (UBI) e membro da comissão científica da So-

ciedade Portuguesa do AVC (SPAVC). A contaminaç­ão do ar deve-se a vários agentes tóxicos, como o ozono, o dióxido de azoto e as partículas em suspensão (PM10 e PM2.5), que “entram em contacto com o organismo, sobretudo através da mucosa nasal e os alvéolos pulmonares, podendo originar alterações da coagulação e desregulaç­ão do sistema nervoso autónomo”, explica José Manuel Calheiros, fazendo referência a “um estudo, com 45 mil participan­tes, que indica que por cada aumento de dez micrograma­s de PM2.5 por cada metro cúbico, a probabilid­ade de ocorrer um AVC aumenta 13%, podendo chegar a 22%. Do total dos casos de AVC, entre os participan­tes deste estudo, 6,6% podem ser atribuídos às PM2.5”.

O tráfego rodoviário, a atividade fabril, as centrais de produção elétrica ou os fogos florestais poluem o ar. “O consumo de tabaco, em casa e no automóvel, é também uma das principais fontes de poluição”, sublinha o professor da UBI. Em espaços interiores, mas também exteriores, a APA destaca o aqueciment­o doméstico por combustão em lareiras abertas pela emissão de partículas e refere como medida preventiva a Estratégia Nacional para o Ar – ENAR 2020, adotada em 2016, com o objetivo de cumprir de forma sustentada os valores limites para a qualidade do ar e os tetos nacionais de emissão de poluentes para 2020 e 2030.

Um ano antes da criação desta iniciativa, Diana Wong Ramos interrompe­u por opção a carreira de jornalista e deixou de estar diariament­e exposta à poluição atmosféric­a dos centros urbanos. “Deixei de fumar e passei a ter uma vida mais saudável e calma, longe do trânsito, da poluição ambiental e até das relações tóxicas que também são uma fonte de stress”, indica a ex-editora da revista “Nova Gente”, e que agora é voluntária, em prol dos sobreviven­tes de AVC, familiares e amigos, na Portugal AVC, associação que em 2016 ajudou a fundar com outros dois sobreviven­tes. ●m

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Diana Wong Ramos (em baixo, à esquerda) fundou a Portugal AVC que, entre outras atividades, organiza o Grupo de Ajuda Mútua para sobreviven­tes da doença, em Alcoitão

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