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É possível passar férias com amigos sem estragar a amizade?

- POR Catarina Silva

O ressonar, a desarrumaç­ão, o dividir contas, até a escolha do restaurant­e. Quando passamos 24 horas juntos, há sempre fatores de fricção. Do orçamento ao itinerário, as viagens (dentro e fora do país) podem ultrapassa­r os limites até das amizades mais sólidas. Mas há dicas para evitar ruturas.

António Pereira já por duas vezes se arrependeu de ter feito as malas para se juntar a amigos nas férias de verão. Uma vez no Algarve, outra na região do Douro. Sempre em casas arrendadas, dias infinitos a partilhar o espaço. “A experiênci­a foi a mesma, péssima, a não repetir.” Já lá vão uns anos desde que rumou ao sul do país com a mulher e um casal amigo, além dos filhos catraios. “Dávamo-nos muito bem, mas para os nossos amigos não havia horas para almoço nem para jantar, mesmo havendo crianças. Dormiam até ao meio-dia. Depois era um martírio para decidir a que restaurant­e ir, e estando lá um queria pedir um vinho caro, o outro não”, relata. Já para não falar da desarrumaç­ão pela casa, da louça a acumular-se na pia e das noites mal dormidas. “Os dois quartos eram muito próximos e o meu amigo ressonava muito. Cheguei ao ponto de ir dormir para a casa de banho. Até comprei tampões para os ouvidos na farmácia.”

Essas férias correram tão mal que António acabou a simular uma chamada telefónica para se vir embora mais cedo, antes que a convivênci­a desse numa rutura difícil de curar. “Chega a uma altura em que já não estás de férias, estás só sob stress. Em vez de estar a relaxar, estava ansioso. Saí de lá emocionalm­ente desgastado. E a verdade é que a relação entre nós nunca mais foi a mesma. Não nos zangámos, mas nunca mais foi da mesma proximidad­e.” Anos mais tarde, decidiu aventurar-se no Douro, arriscou novamente, já com outro casal amigo. Casa com piscina, sobre o rio. Aí o caso foi diferente, a arrumação imperava, só que a disciplina até era em excesso. “Os nossos amigos eram demasiado picuinhas. Nem podia pousar um saco de compras na mesa porque era sujo”, conta. O mais difícil até foi conseguire­m fazer atividades juntos, uns queriam conhecer a zona, os outros preferiam relaxar, sempre que havia planos “parecia um frete”. “Claro que em férias temos de ser flexíveis, mas percebi que só conhecemos verdadeira­mente as pessoas quando partilhamo­s casa com elas.”

Segundo um estudo realizado pela Expedia, empresa de viagens norte-americana, que ouviu 24 mil adultos, de 17 países, 65% das pessoas que planeiam viajar nos próximos anos vão fazê-lo com amigos. E se fé

rias com amigos soa a diversão, a verdade é que passar de encontros casuais para dias inteiros juntos pode ser desafiante. “Quando vamos de viagem com alguém, estamos a dividir o tempo em permanênci­a e, muitas vezes, também o espaço. São 24 sobre 24 horas, com a intensidad­e que uma viagem já tem, porque há muitos estímulos, novas comidas, novas culturas”, aponta Carina Silva, líder de viagens na Landescape. Aqui, há que dizer que nem sempre o facto de haver uma amizade é sinal de que as pessoas são compatívei­s em viagem: “Já fui viajar com amigos e correu muito mal. Porque não temos formas de ver o Mundo iguais. E também já viajei com pessoas que não conhecia e que se tornaram amigas.”

Comunicar, definir o plano a priori

No meio de tudo, há estratégia­s para evitar conflitos maiores. A primeira dica é óbvia: comunicaçã­o. “Muitas vezes, há relações que se estragam em viagem porque as pessoas não comunicam, vão acumulando o mal-estar até chegar o momento em que explodem”, alerta Carina. Ana Isabel Lage Ferreira, psicóloga clínica e membro da direção da Ordem dos Psicólogos, tende a concordar e explica que o ideal é chegar a alguns compromiss­os antes mesmo de partir. “Não podemos partir do princípio que as pessoas sabem o que nos vai na cabeça. Se não partilharm­os logo os nossos interesses, as nossas expectativ­as, pode correr mal. Se um amigo gosta de acordar cedo, outro tarde, um gosta de ficar na esplanada e o outro prefere correr a cidade, um quer ver museus e o outro andar à descoberta, o melhor é partilhar isso de antemão para se ajustarem e definirem um plano que seja um meio-termo.” Um dia pode ser mais ao sabor do vento, outro pode ser dedicado a seguir o roteiro à risca. Caso contrário, há um acumular de irritabili­dade, de frustração, de descontent­amento. “As férias são momentos muito condensado­s, há decisões a tomar, imprevisto­s, muitas coisas que fogem ao nosso controlo e exigem adaptação. Muitas vezes as pessoas acham que se conhecem e não se conhecem.” Por isso mesmo, a psicóloga deixa uma sugestão. “Se vão passar férias com pessoas com quem nunca foram, o ideal é começar por algo mais curto, um fim de semana, para experiment­ar.”

A arriscar fazer logo uma viagem mais longa e não havendo consensos, importa sublinhar que, como diz Carina Silva, “o facto de ir num grupo de amigos não significa que estamos acorrentad­os”. Ou seja, não temos de estar sempre, sempre juntos. “Podemos fazer uma parte do programa em comum, mas, se quero fazer alguma coisa e ninguém mais quer, posso acordar mais cedo para o fazer e depois encontramo-nos mais tarde. Isso vai permitir que ninguém esteja pressionad­o a fazer o que não quer.”

Partilhar casa, dividir contas

Feito o preâmbulo, vamos por partes. Quando há partilha de casa, haver flexibilid­ade é determinan­te, segundo Carina. “Se gosto de tudo arrumado e as outras pessoas são muito desarrumad­as, é preciso pensar que a viagem só vai durar alguns dias, que este não é o nosso habitat, não é a nossa casa.” Porém, se houver algo que nos esteja mesmo a incomodar, é importante falar. “Porque é que não ajudaste a lavar a louça? Mais vale comunicar logo”, defende Ana Isabel, garantindo que isso evita “muitos mal-entendidos”. Outra questão que se põe é a divisão dos quartos, decidir quem dorme onde. Aqui, é de evitar situações em que alguém tem de ficar a dormir no sofá ou num quarto pior. A ter de ser, pode recorrer-se a um sorteio para decidir. “Mas, se for uma questão difícil, mais vale assumir e ir para um hotel”, avisa Carina.

No que toca a dividir contas, a líder de viagens sugere a aplicação “Splitwise”, onde basta introduzir o que cada pessoa vai pagando ao longo da viagem numa conta partilhada e, no final, a app gera o resultado de quem deve dinheiro a quem. Aqui, há outra dúvida que se levanta. Num jantar, dividir o total por todos ou cada um pagar a sua refeição? “Pode haver alguém que bebe mais e eu aceito dividir por todos para ser fixe, mas, se depois fico ressabiada, mais vale dizer. Às vezes achamos que é uma questão de bom senso, só que não há um bom senso universal”, afirma Ana Isabel. No tema do dinheiro, entra outro ponto relevante: o orçamento que cada um tem para a viagem. A discórdia também se pode instalar quando há amigos que vão mais à larga e outros que querem poupar. “Se alguém quer ir a restaurant­es mais caros e eu não posso, podemos chegar a um acordo. Vamos num dia a um mais caro, mas, em compensaçã­o, nos outros dias baixamos a fasquia. Isso pode ser ir a menos festas, ir a mais restaurant­es de rua”, refere Carina.

Não há ciência que ateste o número ideal de amigos para viajar, porém Ana Isabel arrisca dizer que “sendo ímpar pode dificultar, porque há sempre alguém que não tem par e fica pendurado”. Há uma certeza, nas férias temos de estar disponívei­s para improvisar. “E sim, se forem prolongada­s, podem levar-nos a perceber que, afinal, não temos assim tanto em comum e, no limite, estragar uma amizade”, acrescenta a psicóloga. Até porque podemos descobrir diferenças irreconcil­iáveis. “As viagens têm a capacidade de nos fazer despir a personagem que assumimos no dia a dia. Tanto nos podem fazer perceber só que não resultamos a viajar juntos, como podem mexer com crenças e valores e aí ser fraturante”, assinala Carina. Por outro lado, também podem aproximar-nos mais e ajudar a criar laços para a vida. Viajar é sempre intenso, para o bem e para o mal.

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