O Jogo

Quando ser mãe fala mais alto

O futebol feminino está a crescer em Portugal como a barriga de Patrícia Gouveia. A internacio­nal portuguesa e capitã do Sporting visitou a redação de O JOGO e, em vez de ao pé, fez o gosto ao dedo, escrevendo, na primeira pessoa, como é estar grávida e t

- Por Patrícia Gouveia capitã do Sporting

Escrever parece bem mais fácil do que jogar o desportore­i, mas quando se trata de contar a nossa história, o desafio torna-se maior. Tanto ou mais que um passe a rasgar, como se diz na gíria do futebol. Do meu futebol! Quando fui convidada por O JOGO – na redação, pude inteirarme um pouco sobre o processo de escrita e a conceção do jornal – para escrever sobre a minha gravidez, aceitei com agrado, pois sempre adorei a escrita. Estou grávida de 23 semanas e tenho já uma barriguinh­a bem saliente e uma menina cada vez menos tímida, a julgar pelos movimentos frequentes que vou sentindo (cada vez mais) no dia a dia. Estão sempre a perguntar-me se a minha bebé também será jogadora como a mãe, ao que respondo que a Constança será o que ela quiser e fará o que a fizer mais feliz. Mas a julgar pelos “pontapés e cambalhota­s”, tanto poderá ser jogadora como a mãe ou ginasta como o pai. São várias as mudanças que se sentem nesta fase única da vida de uma mulher, e uma atleta não é exceção. Ainda antes de saber que estava grávida, comecei a sentir um ligeiro aumento de peso – algo surpreende­nte para mim, visto que sempre me trataram por “Fininha” –, bem como desagrado em relação a cheiros e alimentos. Como atleta cuidada, comecei a ficar preocupada e decidi perceber o que se passava.

Descobri que estava grávida com cerca de nove semanas de gestação e enquanto preparava mais um jogo do campeonato pelo Sporting, depois de ter regressado do play-off na Roménia onde, pela primeira vez, conseguimo­s (Seleção Nacional A feminina) um histórico apuramento para uma fase final do Campeonato da Europa. Apesar de todas as expectativ­as de uma época de sonho, repleta de objetivos e desafios ambiciosos, tanto no clube como na Seleção Nacional, o sonho de

ser mãe falou mais alto.

O LIVRE QUE ME FEZ PENSAR NA BEBÉ

Não foi uma decisão fácil de tomar. Já sabendo que estava grávida, ainda fiz três jogos oficiais, porque a paixão pelo futebol e o sentimento de compromiss­o e dever para com a minha equipa se sobrepuser­am a eventuais riscos para a minha saúde e a da bebé. O ponto de viragem foi aterrador mas esclareced­or. Decorriam os últimos minutos do jogo contra o União Recreativa Ferreirens­e e ganhávamos por 4-1. Foi marcado um livre próximo da nossa baliza e a guarda-redes pediu quatro jogadoras na barreira. Eu, como sempre, seria a quarta da barreira, conforme indicação do nosso treinador. Pela primeira vez, contudo, senti medo pela bebé ao ir para a barreira e acabei por tomar uma decisão de recurso. Contra a minha natureza de jogadora, pedi a uma colega que ocupasse o meu lugar, enquanto fui para a área (rezar para não) disputar o lance.

LÁGRIMAS DE FELICIDADE AO DAR A NOTÍCIA

A partir desse dia, 4 de dezembro, não voltei a pisar os relvados. No treino seguinte, anunciei a minha gravidez ao treinador e, depois, à equipa e restante staff. Há momentos em que temos de escolher entre sonhos, adiar alguns, perseguir outros... A decisão foi fruto de um balanço ponderado entre não interrompe­r a carreira desportiva – face ao compromiss­o para com o meu clube e a minha equipa, a par da possibilid­ade de ir a uma fase final de um Campeonato da Europa –e o sonho de uma vida: o de ser mãe. Ainda que seja normalment­e muito racional e ponderada, dei a notícia às minhas colegas de equipa de lágrimas nos olhos e, na altura, convenient­emente defendime com o argumento “coisas de grávida!” Foi dos momentos mais emotivos e difíceis da minha vida e a reação delas à notícia lembrou-me a razão pela qual escolhi este desporto. Os laços que se criam num grupo que dá tudo dentro das quatro linhas, treino após treino, jogo após jogo, são das melhores experiênci­as de vida que se pode ter.

A CONSTANÇA FOI A 12.ª JOGADORA

Todas me apoiaram, com muita alegria, apesar de saberem que esta notícia significar­ia a minha ausência dos relvados pelo menos até ao final da época. Disseram até que a bebé já tinha 21 madrinhas e não faltaram ideias para futuros nomes. A comitiva técnica foi exemplar no apoio à minha decisão, comandada pelo meu treinador, o professor Nuno Cristóvão, um ser humano excecional. Em tom de brincadeir­a, algumas colegas até me disseram que podíamos perder pontos por termos jogado com... 12! É verdade que a gravidez em nada beneficia uma atleta em termos desportivo­s (pelo contrário, até), mas não deixa de ser engraçado, porque o Sporting conta

sempre com o 12.º jogador e, neste caso, era a Constança que estava em campo connosco.

NOVA VIDA COM NERVOS DE AÇO NA BANCADA

Rapidament­e tive de me adaptar a uma nova vida fora dos relvados, uma vez que, na opinião do médico, por se tratar de um desporto com elevado risco de contacto físico, qualquer incidente poderia ser fatal para a minha bebé. Passei a fazer exercício físico regular como corrida e ginásio, algo benéfico para o desenvolvi­mento dela e, naturalmen­te, para o meu corpo, que assim irá recuperar duma forma mais rápida após o parto.

A pior parte é ser agora uma espectador­a fora do “meu palco”, o relvado, o que se revelou bem mais difícil do que eu imaginava. Recordo-me de um episódio há umas semanas, na casa do atual bicampeão, o Clube Futebol Benfica. Foi um jogo de nervos, que antevia difícil, mas que não queria perder por nada. Nisso, sou como o Cristiano: “Não gosto de perder nem a feijões.” Estávamos a ganhar 3-2, com dez, quando foi mostrada a placa de compensaçã­o de quatro minutos. Desengane-se quem pense que quatro minutos passam rápido; quatro minutos num jogo de futebol são uma eternidade. Estava tão agitada que não fui capaz de ver, voltei-me para uma parede até ouvir o apito final. Foi quando alguém me disse, em tom de brincadeir­a: “Mãe sofre!” É verdade, agora percebo-o, mas neste caso por me sentir um pouco como “mãe” das minhas colegas. Atualmente concilio a minha atividade profission­al principal (gestora operaciona­l num banco) com os “esgotament­os nervosos” em dia de jogo.Assaudades­deacabarod­ia com uma bola nos pés, a fazer o que mais gosto, têm sido atenuadas pelos momentos repartidos entre família e amigos, enquanto ansiosamen­te espero por conhecer a menina que não me fez desistir de um sonho: ela só o adiou. E, felizmente, junho está já aí à porta...

Em tom de brincadeir­a, algumas colegas até me disseram

que podíamos perder pontos por termos jogado com... 12!

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