O Jogo

O corte altruísta de Carlos Paulo nas ruas de Lisboa

- Textos PAULO A. TEIXEIRA Fotos ÁLVARO ISIDORO

Barbeiro de profissão, é também guarda-redes de futsal do Belenenses e ganhou o hábito de percorrer a cidade convidando os mais carenciado­s a cortar o cabelo ou fazer a barba sem lhes cobrar nada. Como disse ao repórter, “ajudar não custa” e a recompensa pelas horas extra é chegar a casa de alma e coração limpos

Com uma pequena mala ao ombro e uma cadeira na mão, Carlos Paulo sai da barbearia Oliveira, onde trabalha há quase três anos, em Alfama, bairro onde cresceu e mora. Estamos no final da tarde e o guarda-redes de futsal do Belenenses ainda vai treinar no Restelo, mas antes disso tem tempo para revelar uma faceta altruísta: cortar o cabelo às pessoas mais carenciada­s, sem cobrar um cêntino que seja.

Já sem a indumentár­ia, composta por camisa, colete e gravata, que caracteriz­a os funcionári­os da centenária barbearia da capital, Carlos Paulo percorre uns metros perante os acenos de amigos e olhares curiosos de turistas, até se aproximar de um senhor, explicar quem é e ao que vem. “Convite” aceite, em pleno Largo das Alcaçarias, onde jogou à bola em criança, Carlos Paulo coloca o penteador e começa a tarefa. Com pente, máquina e umas tesouradas – usa uma tesoura normal e outra de desbaste –, deixa o sr. Vítor radiante. “Sabe bem cortar o cabelo ao fresquinho. Só falta uma imperial. Dou-lhe nota 20 pelo trabalho”, exclama Vítor.

Trata-se já de uma rotina que, por norma, Carlos Paulo costuma fazer uma vez por mês, à noite. A ideia de servir os outros, sem ser remunerado, tem algum tempo. “Via que noutros países se fazia isso e pensei porque é que eu também não poderia fazê-lo. Um dia agarrei num banco e nas coisinhas e meti-me sozinho pelas ruas de Lisboa. Fui a pé, pela Avenida da Liberdade, Baixa, ou Santa Apolónia, em locais onde algumas instituiçõ­es costumam distribuir comida. Gostei e cheguei a casa superfeliz, com a alma e o coração limpos. Sempre que posso, lá estou eu. É muito bom e não custa nada ajudar”, contou Carlos Paulo a O JOGO.

A abordagem que presenciám­os correu bem e até suscitou o interesse de algumas pessoas que tiraram fotografia­s do momento. Na maior parte dos casos, a aceitação é imediata, segundo conta o guarda-redes. “Umas pessoas ficam de pé atrás, desconfiam, mas há muito mais respostas positivas. Apresento-me, digo que sou de Alfama e barbeiro de profissão e que ando pelas ruas a tratar de quem precisa. ‘Queres dar um toque no cabelo ou na barba? Não te levo nada’”, conta.

Tal como na barbearia, na rua o espelho também faz parte dos objetos imprescind­íveis. “Obrigo-os a olharem para o espelho antes e depois do corte e já vi todo o tipo de reações. Alguns já choraram no final”, diz, revelando que as brincadeir­as também imperam depois de verificada a mudança de visual. “‘Agora é que vou arranjar uma mulher. Agora é que me vou a elas’”, é o tipo de expressões que ouve Carlos Paulo, que atualmente já tem mais colegas a ajudá-lo nas ruas.“Tambémjáco­mbinamos previament­e, com algumas instituiçõ­es, datas e horas e aparecemos quando lhes são dadas as refeições. Costumamos ir à Gare do Oriente. Desde que possa andar, quero fazer

ARRANJAR MULHER DEPOIS DE MUDAR O VISUAL

RICARDINHO COMO COBAIA E O CORTE-TALISMÃ AO MÍSTER

isto durante toda a minha vida. Também faço domicílios com as pessoas que já me conhecem. Não vou deixar de fazer isto a quem mais precisa”, sublinha o guarda-redes de 30 anos.

Hoje representa o Belenenses, mas Carlos Paulo esteve oito anos e meio no Benfica, tendo integrado o plantel campeão europeu em 2010. Foi nos balneários da Luz que teve as primeiras cobaias. “Já cortava em casa e comecei a aventurarm­e em 2007 com os colegas do Benfica. Recordo-me que os primeiros cortes não foram dos melhores, mas eles não se importavam e, bem ou mal, sempre iam mais bonitinhos para os jogos”, conta com um sorriso, revelando que Ricardinho, Bebé, Pedro Costa, Zé Maria, Diece ou Zé Carlos eram clientes. “Todos me ajudaram”, diz, sem esquecer André Lima, antigo companheir­o de equipa e técnico que levou as águias à conquista do inédito troféu, há sete anos. Na noite antes da final, no então Pavilhão Atlântico, deu-se um corte que se revelou talismã. “Estávamos em estágio e aquilo foi pente três ou quatro, que era como o André cortava sempre, e há essa curiosidad­e de depois termos sido campeões europeus.”

As brincadeir­as com o míster, que hoje trabalha na China, também eram permanente­s. “Dizia-lhe: ‘Como é que é, André? Corto-te o cabelo e metesme a jogar!’, mas quem jogava era o Bebé, que é meu padrinho de casamento. Importante foi termos sido campeões”, refere Carlos Paulo.

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