O Jogo

O cronista envelhece nas férias

- Jacinto Lucas Pires

É uma contradiçã­o assim do nível do monstruoso, caros amigos. No tempo de férias, quando estamos mais livres de relógios e stresses, quando o sol nos ilumina o espírito e as ondas do mar nos põem de “boa onda”, é que as manchetes nos vêm lembrar das zonas mais sombrias do mundo da bola, de toda a gélida engrenagem à volta do “maior espetáculo do mundo” — de que, atrás de cada ídolo a fazer uma vírgula, um toque de calcanhar, uma bicicleta, há a sombra de tanto negócio duvidoso. Durante o tempo regulament­ar das três estações de trabalho e competição, ainda é possível um tipo concentrar-se só nos jogos e na arte do futebol propriamen­te dito. Mas, nestes verões ímpares sem europeus nem mundiais, fugir ao ruído extrabola é um esforço quase heroico. Como naquelas histórias em que o miúdo encantado com o circo descobre que, nos bastidores, o magnífico palhaço é cruel com o filho e a mulher ou que o sorridente equilibris­ta é o mais mesquinho dos carreirist­as. Nesse instante que tão bem conhecemos (ainda que, porventura, já nem o lembremos), o mito cai e o miúdo cresce. Mas, perdoem-me a pergunta, caros amigos: a que preço?

Porque é isso que nos ensina esta modernidad­e do “futebol empresaria­l”, esta era de “cromos” que custam milhões: tudo tem um preço... E, no entanto, digam-me, não faz parte do nosso amor pelo futebol – do nosso autêntico, desvairado, infantil, sonhador amor pelo futebol – a ideia de que, sim, há coisas mais importante­s do que os cifrões?

O tédio de não haver bola a rolar não tem remédio até a bola recomeçar a rolar, claro. Ainda assim, este poderia ser um tempo bem melhor. Se, por exemplo, a natural expectativ­a em relação aos novos craques não fosse, tantas vezes, atravessad­a pela suspeita de outros interesses. Se, por exemplo, a saudade do futuro que os miúdos da formação representa­m fosse mais acarinhada. Se, em geral, conseguíss­emos contrapor ao doentio vício da negociata algo mais parecido com um saudável amor à camisola.

Talvez isto não interesse a ninguém. Talvez seja isto envelhecer (esse fenómeno que acreditámo­s, secretamen­te, ser só para os outros...). Talvez, sem dar conta, o cronista se tenha vindo a tornar um cota romântico an ti-futebolhip­ermercado. Talvez dizer não a estes dias de roleta no mundo desportivo seja uma quixotice, um disparate.

Nesse caso, perdão, queridos leitores.

Nestes verões ímpares sem europeus e mundiais, fugir ao ruído extrabola é um esforço quase heroico

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Descalço na Catedral

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