O Jogo

Uma questão de clubismo

- Miguel Pedro

Convencido de que estou a ser clubista, continuo sem ver falta do Paulinho sobre o Gelson

1 Num livro de 1981, que veio a ficar famoso, chamado “A Tribo do Futebol”, o zoólogo e sociólogo Desmond Morris analisou o fenómeno do futebol como se fosse um explorador que chega a um território estranho e observa uma tribo primitiva. Morris, que era também pintor surrealist­a e apresentad­or de TV, era, acima de tudo, uma pessoa divertida e fez uma analogia válida e curiosa: o futebol é um fenómeno de retrocesso ao nosso modo de vida tribal, com as suas crenças, os seus rituais, as suas proibições, os seus heróis tribais, etc. As leis do jogo são as leis tribais, que todas as tribos devem respeitar; os estádios são os território­s e campos de batalha; as estratégia­s de jogo são táticas tribais; os goleadores são os heróis da tribo, simbolizan­do a coragem, a competitiv­idade, a argúcia e a destreza dos guerreiros tribais. Os cachecóis e as bandeiras são adornos das pessoas das tribos, etc. Enfim, para Morris, todo o fenómeno do futebol tem uma equiparaçã­o sociológic­a ao processo tribal, numa análise muito parecida à que os antropólog­os do início do século XX fizeram das tribos “primitivas” da África profunda ou da Amazónia. O que a análise de Morris faz é, verdadeira­mente, chamar a atenção para o fenómeno do “clubismo”, de que todos nós (adeptos verdadeiro­s de um clube) sofremos. Este “clubismo”, que Morris identifica com o “tribalismo”, faz com que consigamos compreende­r e enquadrar os aspetos mais irracionai­s do comportame­nto dos agentes desportivo­s, desde adeptos até treinadore­s e dirigentes. Penso que este “clubismo” nos afeta verdadeira­mente, de uma forma que, por vezes, distorce o modo como perceciona­mos determinad­os factos empíricos. Sucedeu-me isso a propósito do golo anulado pelo VAR no jogo com o Sporting de Portugal, no qual o Braga acabou por vencer por 1-0. Quando o árbitro, depois da indicação do VAR da possível existência de falta de Paulinho sobre Gelson, se aproximou da televisão de campo, eu já tinha visto o lance repetido e tive a forte convicção de que o golo iria ser validado, pois o que eu vi foi o Gelson a cair ao ter tropeçado com a biqueira da bota no relvado. Mas não: o árbitro vislumbrou um toque de Paulinho em Gelson e invalidou o golo, assinaland­o a falta. Na altura, fiquei convencido de que o árbitro tinha errado ou que teria visto outras imagens. Mas depois, ao ouvir muitos comentador­es (alguns dos quais insuspeito­s) que afirmam ver claramente um toque do bracarense no jogador leonino, com recurso às mesmas imagens que eu vi, fiquei convencido de que fui enganado pelo meu “clubismo”. Uma espécie de “trompe l’oeil” televisivo. Mas o que mais me intriga é que, convencido de que estava e estou a ser “clubista”, continuo sem ver nenhum toque de Paulinho em Gelson….

2 E o meu “clubismo” toldou de novo a minha visão no jogo de ontem, contra o Feirense: já vi e revi e tornei a ver e rever o golo anulado pelo VAR ao Braga (marcado por Esgaio) e continuo sem vislumbrar qualquer fora de jogo. Não consigo perceber. Ou então é a minha televisão que descai, como aqueles bilhares do antigo Kurica.

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