“Em África, o futebol baixa as armas”
Em conversa aberta com O JOGO, o senegalês que passou por FC Porto, Covilhã, Académica e V. Guimarães falou dos problemas sociais que o preocupam e de como os esquece graças ao desporto
Bem-disposto e alegre. Foi com esse espírito tipicamenteafricanoqueAbdoulaye Ba recebeu o nosso jornal, aproveitando a passagem do Rayo Vallecano por Portugal para defrontar o Belenenses nos “Encontros Ibéricos”. Em português fluente, Abdoulaye falou das suas preocupações com a vida humana, a sua visão humilde do mundo e o poder do futebol. Animador de balneários com a música do seu djembê senegalês, prometeu... mas não cumpriu as expectativas no FC Porto. Espera voltar um dia a Portugal, nem que seja para comer mais vezes “o bacalhau na brasa”, um dos seus pratos favoritos. Nasceu em Saint-Louis, no Senegal, numa família numerosa. Como apareceu o futebol na sua vida? — Tenho dois irmãos que também jogam futebol. Isso fezme lutar para concretizar os meus sonhos. O meu pai não me deixava jogar. Eu era o mais novo e queria que eu estudasse. O meu avô deu-me a primeira bola, só tínhamos bolas que fazíamos artesanalmente! Para mim, era melhor do que se me tivesse dado dinheiro. Saíamos de casa e jogávamos na rua, na estrada. É especial fazer o mesmo, chegar lá e dar bolas aos miúdos. Tinha um irmão a jogar na Polónia e quando, aos 16 anos, joguei na seleção muitos clubes foram à minha procura. Acabei por ir para França e depois Portugal. Vendo o peso do futebol, devia haver maior envolvimento com a comunidade em ações sociais? — Sim, porque o futebol supera tudo. Quando há um Mundial, o Senegal pára. Fica toda a gente à frente da televisão.Ofuteboltemumimpacto enorme. Eu consegui realizar o sonho da minha vida, ajudei os meus pais, a minha família, os meus vizinhos... O futebol permitiu-me retribuir. Só o futebol pode trazer paz! Quando a Costa do Marfim foi campeã de África, estava dividida em dois, mas conseguiram unir as várias etnias, juntaram as pessoas de bandos rivais. Deixaram as armas para ver o futebol. O futebol ainda podia ser
“Incidentes na Academia do Sporting? A desilusão dói aos adeptos”
Ao longo da sua carreira, Abdoulaye esteve no V. Guimarães e no Fenerbahçe, dois clubes com adeptos reconhecidamente fanáticos e que já proporcionaram alguns episódios menos agradáveis de “pressão” sobre os jogadores. Questionado sobre os incidentes que se verificaram na Academia do Sporting, mostrou a sua surpresa, procurando explicações: “No Sporting estão a fazer tudo para melhorar, querem ser como Benfica ou FC Porto ou mesmo melhores. Quando há desilusões, isso dói aos adeptos. Mas estou a ver que estão a recuperar bem. O Sporting não vai morrer, segue em frente. Não foi normal. Acontece em África e na América do Sul, mas não é mediatizado. Aconteceu no Egito... Espero que não se repita em Portugal!”
mais bem aproveitado, mas tem os seus limites. Quando jogo futebol, esqueço todos os problemas sociais. Não posso dar tudo às crianças, mas pelo menos dou bolas e camisolas para tentarem realizar os seus sonhos. Mas fala com preocupação da condição humana... Como vê, por exemplo, a crise dos refugiados na atualidade com os países mais evoluídos a limitarem o seu acolhimento? — Dói-me. São humanos. Vejo campos de refugiados, pessoas a sofrer na Síria, a viver na miséria, tal como as pessoas que fogem de África para ter uma vida melhor. E foram estes países europeus que nos foram colonizar.Nuncalhespedimos para nos colonizarem, mas agora que tentamos vir para a Europa já é um problema. Ser humano é respeitar a pessoa que está à tua frente, seja africana, chinesa... Tenho a minha opinião, vi muitas coisas não só com refugiados. As pessoas não se preocupam com os outros e deviam. Temos de sentir algo. Costuma levar consigo um djembê senegalês e anima os balneários transmitindo esse espírito africano? — Claro. Um africano tem prazer natural em viver. Não temos muitas coisas, mas algumas sempre dão felicidade. Podemos ter só um pão para comer e nunca vão ver tristeza na nossa cara. Quando era criança, a minha mãe dançava e cantava para eu dormir. Isso é típico africano. O meu pai dizia que o dinheiro é importante, mas não traz toda a felicidade. Quando a nossa vida chegar ao fim, vamos deixar tudo cá, por isso a vida humana é mais importante que o dinheiro.