O Jogo

“Em África, o futebol baixa as armas”

Em conversa aberta com O JOGO, o senegalês que passou por FC Porto, Covilhã, Académica e V. Guimarães falou dos problemas sociais que o preocupam e de como os esquece graças ao desporto

- RAFAEL TOUCEDO

Bem-disposto e alegre. Foi com esse espírito tipicament­eafricanoq­ueAbdoulay­e Ba recebeu o nosso jornal, aproveitan­do a passagem do Rayo Vallecano por Portugal para defrontar o Belenenses nos “Encontros Ibéricos”. Em português fluente, Abdoulaye falou das suas preocupaçõ­es com a vida humana, a sua visão humilde do mundo e o poder do futebol. Animador de balneários com a música do seu djembê senegalês, prometeu... mas não cumpriu as expectativ­as no FC Porto. Espera voltar um dia a Portugal, nem que seja para comer mais vezes “o bacalhau na brasa”, um dos seus pratos favoritos. Nasceu em Saint-Louis, no Senegal, numa família numerosa. Como apareceu o futebol na sua vida? — Tenho dois irmãos que também jogam futebol. Isso fezme lutar para concretiza­r os meus sonhos. O meu pai não me deixava jogar. Eu era o mais novo e queria que eu estudasse. O meu avô deu-me a primeira bola, só tínhamos bolas que fazíamos artesanalm­ente! Para mim, era melhor do que se me tivesse dado dinheiro. Saíamos de casa e jogávamos na rua, na estrada. É especial fazer o mesmo, chegar lá e dar bolas aos miúdos. Tinha um irmão a jogar na Polónia e quando, aos 16 anos, joguei na seleção muitos clubes foram à minha procura. Acabei por ir para França e depois Portugal. Vendo o peso do futebol, devia haver maior envolvimen­to com a comunidade em ações sociais? — Sim, porque o futebol supera tudo. Quando há um Mundial, o Senegal pára. Fica toda a gente à frente da televisão.Ofutebolte­mumimpacto enorme. Eu consegui realizar o sonho da minha vida, ajudei os meus pais, a minha família, os meus vizinhos... O futebol permitiu-me retribuir. Só o futebol pode trazer paz! Quando a Costa do Marfim foi campeã de África, estava dividida em dois, mas conseguira­m unir as várias etnias, juntaram as pessoas de bandos rivais. Deixaram as armas para ver o futebol. O futebol ainda podia ser

“Incidentes na Academia do Sporting? A desilusão dói aos adeptos”

Ao longo da sua carreira, Abdoulaye esteve no V. Guimarães e no Fenerbahçe, dois clubes com adeptos reconhecid­amente fanáticos e que já proporcion­aram alguns episódios menos agradáveis de “pressão” sobre os jogadores. Questionad­o sobre os incidentes que se verificara­m na Academia do Sporting, mostrou a sua surpresa, procurando explicaçõe­s: “No Sporting estão a fazer tudo para melhorar, querem ser como Benfica ou FC Porto ou mesmo melhores. Quando há desilusões, isso dói aos adeptos. Mas estou a ver que estão a recuperar bem. O Sporting não vai morrer, segue em frente. Não foi normal. Acontece em África e na América do Sul, mas não é mediatizad­o. Aconteceu no Egito... Espero que não se repita em Portugal!”

mais bem aproveitad­o, mas tem os seus limites. Quando jogo futebol, esqueço todos os problemas sociais. Não posso dar tudo às crianças, mas pelo menos dou bolas e camisolas para tentarem realizar os seus sonhos. Mas fala com preocupaçã­o da condição humana... Como vê, por exemplo, a crise dos refugiados na atualidade com os países mais evoluídos a limitarem o seu acolhiment­o? — Dói-me. São humanos. Vejo campos de refugiados, pessoas a sofrer na Síria, a viver na miséria, tal como as pessoas que fogem de África para ter uma vida melhor. E foram estes países europeus que nos foram colonizar.Nuncalhesp­edimos para nos colonizare­m, mas agora que tentamos vir para a Europa já é um problema. Ser humano é respeitar a pessoa que está à tua frente, seja africana, chinesa... Tenho a minha opinião, vi muitas coisas não só com refugiados. As pessoas não se preocupam com os outros e deviam. Temos de sentir algo. Costuma levar consigo um djembê senegalês e anima os balneários transmitin­do esse espírito africano? — Claro. Um africano tem prazer natural em viver. Não temos muitas coisas, mas algumas sempre dão felicidade. Podemos ter só um pão para comer e nunca vão ver tristeza na nossa cara. Quando era criança, a minha mãe dançava e cantava para eu dormir. Isso é típico africano. O meu pai dizia que o dinheiro é importante, mas não traz toda a felicidade. Quando a nossa vida chegar ao fim, vamos deixar tudo cá, por isso a vida humana é mais importante que o dinheiro.

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Em África, diz, pára tudo para ver os jogos do Mundial. A CAN, recorda, chegou a gerar tréguas nos conflitos armados da Costa do Marfim. Um poder, o do futebol, por otimizar...“Só o futebol pode trazer paz. Quando jogo futebol esqueço os problemas sociais” “Um africano até pode só ter um pão, mas nunca vão ver tristeza na nossa cara” “Os europeus colonizara­m África, mas quando procuramos uma vida melhor na Europa já é um problema” “Sei bem o que é ser dragão. Se alguém me tocava, tocava em todos nós. Era uma família”

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