O Jogo

Renato DiCaprio somos todos nós

- Jacinto Lucas Pires

Houve quem se fixasse na primeira palavra alemã proferida por Renato Sanches, mas o que eu achei mais interessan­te na entrevista que o craque português deu lá para as terras de Goethe foi a resposta sobre atores. Quando lhe perguntara­m quem deveria representa­r a personagem Renato Sanches num filme sobre a sua vida, o craque nem tremeu. “Leonardo DiCaprio”, atirou. É uma resposta daquelas, não concordam, caros amigos? Uma tirada de antologia, um rasgo da melhor comédia filosófica, um monumento de síntese. Sim, uma resposta que vale não só pela provocação, mas também pelo que deixa no ar como matéria para pensamento. Como se o entrevista­do, com uma mera finta de corpo, sentasse o entrevista­dor e os leitores, e atirasse a bola lá mesmo para o ângulo da inteligênc­ia.

Acaba de ser lançado um livrinho com cinco peças minhas e, talvez por isso, eu ande com o teatro na cabeça ainda mais do que é costume — mas a genial resposta de Renato pôs-me a pensar no que o futebol tem de projeção, representa­ção,

construção da identidade. Em miúdos, queremos ser iguais aos craques-heróis e vivemos cada lance de bola como quem vive uma aventura. E, pelo caminho, vamos descobrind­o quem somos. A nossa identidade faz-se do reflexo do olhar dos outros, claro, mas também muito do modo como nos imaginamos.

O engraçado é que isso não morre com a idade. Podemos ter séculos de experiênci­a que, se a nossa equipa está em campo, sofreremos como juvenis e alegrar-nos-emos como infantis. Perguntem a qualquer ator do mundo: nada é mais verdadeiro do que o faz-de-conta. Todos os sábados ou domingos, somos de novo aquele miúdo que sonha ser o Renato Sanches — ele que, por sua vez, sonhou ser o Ronaldinho Gaúcho e que agora, já confortáve­l dentro do seu nome, se imagina representa­do por DiCaprio no cinema. Afinal, talvez a ficção e o futebol não sejam assim tão diferentes. As manchetes concentram-se nos milhões das transferên­cias e nos podres da politiquic­e da coisa, mas é bom não perder de vista que, neste tempo de imediatism­os e cinismos, a bola é um dos poucos espaços de sonho. Sim, disse sonho. O que torna ainda mais execráveis todas as tentativas de o estragar com violência, falcatrua, batota, mau ambiente… Mas, perdoemme, caros amigos, falemos antes de coisas bonitas: viram a gloriosa trivela de Rafa Silva no golo de ontem ao Rio Ave?

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Descalço na Catedral

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