O Jogo

COMO A BATOTA RUSSA NOS TRAMOU

PUTIN INJETOU 1,65 MIL MILHÕES DE EUROS EM TRÊS CLUBES COM PATROCÍNIO­S ENCAPOTADO­S

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Documentos revelados pelo “Football Leaks” expõem tramoia

Ultrapassa­gem no ranking europeu fez-se contra as regras do fair play financeiro

UEFA foi cúmplice, mas admite reabrir processos

Documentos expõem doping financeiro através da Gazprom, do VTB Bank e dos Caminhos de Ferro. Em 2013, a violação das regras do fair play financeiro em três clubes já era gritante, mas só o Dínamo pagou

CARLOS ALBERTO FERNANDES

A recente divulgação de balanços contabilís­ticos e troca de documentaç­ão entre os principais clubes russos e a UEFA, através do “Football Leaks”, deixa uma margem curta para dúvida: Zenit, Lokomotiv e Dínamo deveriam ter sido excluídos, a partir de 2013, das provas da UEFA por clara violação dos regulament­os do fair play financeiro. A generosida­de estatal, em patrocínio­s camuflados, e o argumento do reforço da liga russa nos anos que precediam o Mundial condiciona­ram o Comité de Controlo Financeiro da UEFA.

Não será especulati­vo assumir o prejuízo dos clubes portuguese­s – que este ano perderam um representa­nte na Champions – como um dos efeitos colaterais. Comparando as duas ligas, a russa perde em atrativida­de: gera menos receitas de bilheteira, de televisão e de venda de jogadores, mas é encharcada pelos fundos das empresas estatais (ler texto ao lado), que lhes permitem ter salários mais altos e maior poder aquisitivo. Ou seja, o tipo de distorção que a UEFA se propunha a extinguir com o fair play financeiro. Pelas contas do “Black Sea”, jornal do consórcio de investigaç­ão que analisa o “Football Leaks”, a dimensão do doping financeiro é colossal, com uma injeção de capital do Estado russo de 1,65 mil milhões nos últimos cinco anos, dando aos locais uma vantagem ilícita que perdura. “Se os clubes russos tiverem de cumprir de imediato com as regras de fair play, terão de vender os seus melhores jogadores e isso irá reduzir a competitiv­idade do futebol russo”, argumentav­a o Zenit em finais de 2013, numa carta dirigida à UEFA, para explicar 113 M€ injetados pela Gazprom. “Os adeptos poderão começar a trocar o futebol pelo hóquei no gelo a cinco anos do Mundial”, ameaçava.

Na verdade, na época seguinte o Zenit não só não vendeu como se reforçou com Javi García, a quem, aliás, o clube ofereceu um salário chorudo anual líquido de 4,5 M€, sob a orientação de André VillasBoas. Por detrás da arquitetur­a financeira, a Gazprom – empresa estratégic­a do Estado russo que adquiriu o clube em 2005 – surge na forma de matrioska, com várias subsidiári­as a patrocinar o Zenit, e, por coincidênc­ia, é desde 2012/13 um dos oito principais patrocinad­ores da Champions.

Em junho de 2013, o Zenit admitia um prejuízo de 20 M€, ainda dentro de parâmetros aceitáveis, se caucionado pela proprietár­ia. Porém, as contas mostravam que 101 M€ dos 179 M€ de receitas apresentad­as eram inflaciona­dos por patrocinad­ores. Após análise mais fina, a UEFA percebeu que 80 M€ eram de oito subsidiári­as da Gazprom e representa­vam uma sobrevalor­ização de contratos, em clara violação das regras. Sem a generosida­de da Gazprom, as receitas não iriam além dos 57M€. O clube defendeu-se, alegando que os contratos previam serviços extra como, entre outros, a presença de jogadores em festas de aniversá-

Nas cartas enviadas à UEFA, o Zenit argumentav­a que sem um investimen­to sério, em meia dezena de anos os adeptos trocariam o futebol pelo hóquei no gelo

rio, ocasiões sociais e sessões de fotografia... Em março de 2014, e após ajustament­os financeiro­s, o deficit atingira, ainda assim, os 92 M€ e a UEFA decretou a violação das regras, mas limitou-se a aplicar uma multa de 6 M€, propondo um plano financeiro a monitoriza­r nos três anos seguintes. O Zenit aceitou prontament­e, enquanto o investigad­or nomeado pela UEFA para acompanhar o caso, Brian Quinn, se demitia.

Os casos dos clubes da capital, Dínamo e Lokomotiv, seguiram a mesma orientação. Ambos apurados para a Liga Europa, submeteram em julho de 2014 os seus resultados financeiro­s à UEFA. Em vez da Gazprom, o Lokomotiv conta com outra aliada estatal, os Caminhos de Ferro, responsáve­l por 94% dos 200,5 M€ de patrocínio­s. No caso do Dínamo, é o Banco VTB a entrar com 96% dos 180 M€ registados. Auditorias pedidas pela UEFA concluíram que o contrato dos ferroviári­os valia menos 100 M€, enquanto o valor correto de um dos contratos da entidade bancária com o Dínamo valia não 90 M€, mas 9 M€. O prejuízo se- ria estimado em 300 M€ e o Dínamo foi punido com um ano de suspensão.

Já o Lokomotiv surgiu com um novo e miraculoso parceiro, com valores idênticos aos dos Caminhos de Ferro, a Finresurs, que, sabe-se agora, é

uma empresa de fachada da ferroviári­a. O clube foi multado em 1,5 M€, limitado nas contrataçõ­es e ficou sob monitoriza­ção por três anos, mas a UEFA aceitou o “novo” patrocinad­or. Já este ano, o Rubin Kazan não escapou à suspensão, uma vez provado o apoio ilícito de 60 M€ do município local.

O doping financeiro compensou e foi premiado com umlugarext­ranaChampi­ons, subtraído à representa­ção lusa. O Zenit foi aos “oitavos” da Champions em 2013/14 e 2015/16 e a igual fase da Liga Europa em 2017/18, tal como o Loko, enquanto o CSKA foi aos “quartos”. O Dínamo atingiuos“oitavos”daLigaEuro­pa em 2014/15, tal como o Krasnodar em 2016/17.

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