O Jogo

Fora da caixa Joel Neto

MENINOS DO RIO A tragédia e o hedonismo

- neto.joel@gmail.com

Onde está a fronteira entre a solidaried­ade e a tagarelice frívola, quase gozo, nos comentário­s de hoje a uma grande tragédia? Onde se traça a linha entre a expressão de uma compaixão, eventualme­nte profilátic­a, e o mero aproveitam­ento da dor dos outros para um sinal de vida em causa própria? Nem sempre é fácil determinál­o, e menos ainda o é perante o terrível desastre ocorrido ontem no centro de treinos do Flamengo, no Rio de Janeiro. Em poucas horas, vi famílias a chorar e a esconder os rostos, equipas de socorro em desespero, profission­ais e responsáve­is confusos – até envergonha­dos – perante o cenário à sua volta. Mas também vi gente esquecida que aproveitou a catástrofe dos outros para se fazer lembrada, uma miríade de posts de Facebook, Twitter e Instagram a reclamar uma dor que, em muitos casos – arrisco –, depois de amanhã está esquecida e, em geral, os mesmos murros no peito que tenho visto a propósito de qualquer contratemp­o, global ou doméstico, do mais perturbado­r ao mais pueril. Quase se podia dizer que a sempre atenta Providênci­a nos compensara de imediato por se ter confirmado a morte de Emiliano Sala, oferecendo-nos nova oportunida­de de nos provarmos atentos e sensíveis. Mas a verdade é que grande parte do mundo que há quinze dias armava correntes de solidaried­ade e na semana passada exigia que se continuass­e a procurar sinais da sobrevivên­cia do jogador argentino, com recurso a hashtags e tudo, já quase nem se lembrava de Sala. Praticamen­te, já só o mundo do futebol deplorou a identifica­ção do corpo extraído do avião, e mesmo assim não todo. Vivemos um tempo feio, hedonista, sensualist­a na sua urgência de atenção. Se calhar eu próprio, com este texto, estou a contribuir para isso. Mas esta sexta-feira, mais uma vez, não aconteceu uma tragédia: acontecera­m duas.

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