O Jogo

Imagine o leitor que está em 2019

- Descalço na Catedral Jacinto Lucas Pires

Há um conto de Machado de Assis que começa assim: “Imagine a leitora que está em 1813, na Igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas festas antigas, que eram todo o recreio público e toda a arte musical.” Copio o grande mestre da língua portuguesa para falar de bola. Não, ainda não é desta que faço uma crónica só para as leitoras d’O JOGO, mas – vá, permitam-me um pastichezi­to hoje, que monumentos especiais precisam de modelos monumentai­s.

Imagine o leitor que está em 2019, na Catedral ou em frente a um ecrã simpático, assistindo àquele monumento de arte e querer que foi o 10-0 dado pelo Glorioso ao Nacional. Podia pedir-lhe que atentasse num ou noutro, em dois ou três, em quatro, cinco, seis, em sete e picos, oito e coisa, nove e tal, em cada um dos dez golos marcados nessa tarde eterna. Poderia fazer ainda melhor, se os deuses me tivessem concedido o dom da poesia, pedindo a atenção do leitor para aquela jogada encantador­amente platónica, com três toques de calcanhar e nenhuma alteração no marcador. Defenderia, se escolhesse ir por esse caminho, estar aí a prova de que, ao contrário do que nos pregam resultadis­tas, contabilis­tas e outros simplistas, o essencial do futebol não é o golo, mas a bola. (E que lição tiraríamos daí para a vida fora dos relvados?) Ou poderia tentar guiar a leitura de quem se entretém com esta página domingueir­a na direção deste ou daquele craque: Seferovic feito máquina de golos, Félix devolvendo a alegria aos relvados, Pizzi como a viva demonstraç­ão da transcendê­ncia do homem comum. Mas não. “Não falo sequer da orquestra, que é excelente; limito-me a mostrarlhe­s uma cabeça branca, a cabeça desse velho que rege a orquestra com alma e devoção”, escreve o narrador machadiano no tal conto. O nosso velho, caros leitores, tem quarenta e dois anos e cabelo preto. É dele que vos quero falar, embora repare agora que a crónica está a chegar ao fim: Bruno Lage. Viram como ele revolucion­ou o jogo do Benfica? Como se fosse fácil… O nosso míster é um senhor. Tem pinta de jovem antigo, não concorda, caro leitor? Não digo de 1813, mas pouco menos. Neste nosso tempo de correrias, é fácil despercebe­rmos o brilho do jogador de xadrez. O mestre contido que, com uma simples ideia, transforma o tabuleiro do jogo. Mas registo aqui, com todas as letras: palmas para Lage, um míster para a História.

Neste nosso tempo de correrias, é fácil despercebe­rmos o brilho do jogador de xadrez. Registo aqui, com todas as letras: palmas para Lage, um míster para a História

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