O Jogo

Desculpem, mas hoje preciso falar do José Mário Branco

- Miguel Pedro

Perdoar-me-ão os meus leitores mais atentos, mas hoje não vou falar nem do Braga, nem de futebol. Quero e preciso de falar do José Mário Branco. Como músico e compositor que sou, o Zé Mário foi uma das pessoas que mais me tocou. Mais do que o seu enorme talento como músico, compositor, arranjador ou produtor, foi a sua presença que verdadeira­mente me influencio­u. E a sua voz. Conheci o Zé Mário nos anos 90, no estúdio do José Fortes, produtor dos Mão Morta do álbum Mutantes S21. Mas tive a sorte de poder trabalhar com ele em duas ocasiões: em 2008, compusemos e gravamos em conjunto (com Mão Morta) o tema “Loucura” para uma associação de apoio às vítimas de demência; depois, começamos a trabalhar em 2010 para o espetáculo de encerramen­to da Capital Europeia da Cultura – Guimarães 2012. Foram dois anos de trabalho conjunto, de cumplicida­des partilhada­s com a comunidade vimaranens­e. Fazíamos parte de uma equipa artística muito especial, liderada pela Suzana Ralha, onde estávamos eu, o Adolfo e o Rafael (dos Mão Morta), o Zé Mário, o António Durães, o Fernando Lapa, a Amélia Muge, o Carlão e outros…. Foram dias incríveis. Lembro-me das reuniões da equipa artística e da equipa de produção. Todos falávamos um pouco anarquicam­ente, uns por cima dos outros. As ideias fervilhava­m, era normal que assim fosse, conversas soltas, sobreposta­s numa luta pelo volume mais alto. Até ao momento em que o Zé Mário Branco tomava conta da palavra: aí todos nos calávamos para o ouvir. Nele, nenhuma palavra era gasta, parecia até que ele – sem qualquer esforço – escolhia as palavras de forma especialme­nte criteriosa e cuidada. E o que ele dizia fazia sempre todo o sentido, era o certo, era o que deveria ser dito. Era o que nós esperávamo­s que fosse dito. Deu-se o caso de, nesses anos, eu estar a estudar um filósofo francês, que muito aprecio, de nome Alain Badiou. Percebi, pelas leituras de Badiou, a verdadeira força das palavras do Zé Mário: a fidelizaçã­o a uma Ideia (com letra grande, sim). Para Badiou, ser verdadeiro é manter-se fiel ao Acontecime­nto (uma revolução ou mesmo um encontro amoroso), sendo que este Acontecime­nto é a erupção no Mundo de uma Ideia. Badiou opõe-se às doutrinas modernas do desconstru­tivismo ou do perspetivi­smo, segundo as quais “todas as opiniões são boas, temos que as respeitar”. Se – como Badiou ou o Zé Mário - nos mantivermo­s fieis à Ideia, ao Acontecime­nto (a materializ­ação da Ideia no Mundo), só uma opinião será válida. Era essa a força das palavras do Zé Mário: o artista deverá fidelizar-se à Ideia que o faz ser artista. Deverá respeitar e fidelizars­e à ideia do espetáculo que quer criar e do texto que quer dizer. Assim, só um caminho é possível, o caminho certo, que o Zé Mário sempre soube bem trilhar. Por isso, todos ouvíamos com atenção o Zé Mário, sabendo que, de todas as opiniões que poderíamos ter, a que verdadeira­mente importava era a dele.

Percebi, pelas leituras de Badiou, a verdadeira força das palavras do Zé Mário: a fidelizaçã­o a uma Ideia (com letra grande, sim)

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