Desculpem, mas hoje preciso falar do José Mário Branco
Perdoar-me-ão os meus leitores mais atentos, mas hoje não vou falar nem do Braga, nem de futebol. Quero e preciso de falar do José Mário Branco. Como músico e compositor que sou, o Zé Mário foi uma das pessoas que mais me tocou. Mais do que o seu enorme talento como músico, compositor, arranjador ou produtor, foi a sua presença que verdadeiramente me influenciou. E a sua voz. Conheci o Zé Mário nos anos 90, no estúdio do José Fortes, produtor dos Mão Morta do álbum Mutantes S21. Mas tive a sorte de poder trabalhar com ele em duas ocasiões: em 2008, compusemos e gravamos em conjunto (com Mão Morta) o tema “Loucura” para uma associação de apoio às vítimas de demência; depois, começamos a trabalhar em 2010 para o espetáculo de encerramento da Capital Europeia da Cultura – Guimarães 2012. Foram dois anos de trabalho conjunto, de cumplicidades partilhadas com a comunidade vimaranense. Fazíamos parte de uma equipa artística muito especial, liderada pela Suzana Ralha, onde estávamos eu, o Adolfo e o Rafael (dos Mão Morta), o Zé Mário, o António Durães, o Fernando Lapa, a Amélia Muge, o Carlão e outros…. Foram dias incríveis. Lembro-me das reuniões da equipa artística e da equipa de produção. Todos falávamos um pouco anarquicamente, uns por cima dos outros. As ideias fervilhavam, era normal que assim fosse, conversas soltas, sobrepostas numa luta pelo volume mais alto. Até ao momento em que o Zé Mário Branco tomava conta da palavra: aí todos nos calávamos para o ouvir. Nele, nenhuma palavra era gasta, parecia até que ele – sem qualquer esforço – escolhia as palavras de forma especialmente criteriosa e cuidada. E o que ele dizia fazia sempre todo o sentido, era o certo, era o que deveria ser dito. Era o que nós esperávamos que fosse dito. Deu-se o caso de, nesses anos, eu estar a estudar um filósofo francês, que muito aprecio, de nome Alain Badiou. Percebi, pelas leituras de Badiou, a verdadeira força das palavras do Zé Mário: a fidelização a uma Ideia (com letra grande, sim). Para Badiou, ser verdadeiro é manter-se fiel ao Acontecimento (uma revolução ou mesmo um encontro amoroso), sendo que este Acontecimento é a erupção no Mundo de uma Ideia. Badiou opõe-se às doutrinas modernas do desconstrutivismo ou do perspetivismo, segundo as quais “todas as opiniões são boas, temos que as respeitar”. Se – como Badiou ou o Zé Mário - nos mantivermos fieis à Ideia, ao Acontecimento (a materialização da Ideia no Mundo), só uma opinião será válida. Era essa a força das palavras do Zé Mário: o artista deverá fidelizar-se à Ideia que o faz ser artista. Deverá respeitar e fidelizarse à ideia do espetáculo que quer criar e do texto que quer dizer. Assim, só um caminho é possível, o caminho certo, que o Zé Mário sempre soube bem trilhar. Por isso, todos ouvíamos com atenção o Zé Mário, sabendo que, de todas as opiniões que poderíamos ter, a que verdadeiramente importava era a dele.
Percebi, pelas leituras de Badiou, a verdadeira força das palavras do Zé Mário: a fidelização a uma Ideia (com letra grande, sim)