Hoje há maratona
H oje estaríamos, milhares, a cruzar a Ponte 25 de Abril na Meia Maratona de Lisboa: uma imagem que sempre teve qualquer coisa de estranha maravilha, de rasgão na realidade, mas que agora, em plena quarentena, nos parece mesmo de outro mundo. Hoje é esta a nossa maratona: isolamento em casa, saídas só para o essencialíssimo, o “estritamente necessário”. Como nas corridas de fundo, o truque para não desanimar é concentrarmo-nos no que temos à vista — chegar àquela curva, cumprir o dia de hoje — em vez de sofrer os “ses” do que há de vir. Ainda para mais, esta é uma corrida sem final marcado. Temos de levantar a cabeça e olhar em frente: minuto a minuto, dia a dia.
No desporto há várias questões suspensas, à espera de horizonte e calendários, mas, se calhar, deixávamos essa conversa mais para a frente, sim, queridos leitores? Quando houver uma previsão mais segura para o fim disto, poderemos pesar todas as hipóteses como deve ser.
Para este longo entretanto, venho aqui propor o desporto da leitura. Bem sei que, como escritor, sou suspeito para tal sugestão; perdoem-me, faço-a menos pelos escritores que pelos leitores. É que me parece que corremos o risco de ficarmos ainda mais presos às redes sociais, ainda mais fora do mundo. Numa altura em que, de modo tão duro, percebemos que nunca se deve dar por certa a possibilidade de tomarmos um café com um amigo, de corrermos uma meia maratona, de dar um beijo aos nossos pais e avós, viciarmo-nos em definitivo na droga dura das redes — essa alienação que nos rapta horas e horas ao juntos-aqui, juntos-agora — seria tragicamente irónico. Por isso — sim, leitura. A leitura de jornais, primeiro: poucas vezes terá sido tão clara a necessidade de jornalismo sério, fundamentado, com dados sólidos, ângulos distintos e pensamento digno desse nome. E a leitura de livros. Esta semana, proponho aqui três viagens literárias sobre futebol, tempos difíceis e corações suspensos, respetivamente: “À sombra das chuteiras imortais” mais “A pátria em chuteiras”, as geniais crónicas de bola de Nelson Rodrigues; “A praça do diamante”, de Mercè Rodoreda, um romance que nos revela o que somos com a mais bela das delicadezas; e “Cadernos de Bernfried Järvi”, de Rui Manuel Amaral, em que o mundo se reconstrói sob os nossos olhos como que acidentalmente.
Dizem que é importante fazer exercício nestes dias fechados. (Pensei tentar a meia maratona no patiozinho cá de casa, mas talvez seja melhor não exagerar…) Não pode é ser só o corpo, também temos de exercitar a alma! A ver se estamos com a cabeça no sítio, quando isto passar, para nos alegrarmos de novo com aquela finta impossível, aquele diagonalíssimo passe, aquele goloobra-prima.