O vírus que curará o futebol?
1Antes de mais, uma palavra para todos aqueles que anonimamente saem todos os dias de casa para assegurar o funcionamento da nossa sociedade, ainda que reduzida aos serviços mínimos essenciais. Pessoal das empresas de distribuição, limpeza, telecomunicações, comunicação social, serviços camarários, transportes, segurança, supermercados, pessoal hospitalar, serviços públicos, etc. Muitos vivem com dificuldades, alguns correm riscos e merecem nosso apreço e respeito. E sobretudo merecem não ser esquecidos quando a todos for apresentada a fatura desta crise económica que ameaça tornar-se ela própria epidémica. Hoje estamos unidos nesta pandemia, amanhã contaremos espingardas nos destroços do que ficar de pé. A memória coletiva é curta e é bom que nessa altura os sacrifícios sejam distribuídos de forma equitativa e que sobretudo não nos esqueçamos de todos aqueles que agora se sacrificam para podermos ficar em casa em segurança.
2É óbvio que neste contexto, o futebol é relegado para um plano absolutamente secundário, o que trará dificuldades acrescidas ao setor. Duvido que num cenário de pandemia global, desemprego e de uma profunda crise económica, exista margem política e aceitação social para medidas de apoio para um setor que vive acima das suas possibilidades e assente em valores que pouco em nada têm a ver com o desporto de massas e popular que gerou paixões pelo mundo fora. Sendo um setor autoregulado, caberá ao futebol encontrar as soluções para a crise que aí vem.
3A dimensão da crise é absolutamente imprevisível, pois depende em larga escala da retoma das competições e das transmissões televisivas. O futebol deixou de ser sustentável por si mesmo e das receitas que ele próprio gera – bilheteira, publicidade e quotizações – para estar na mão das operadoras televisivas que alimentam a orgia de transferências milionárias e salários imorais para uma pequena minoria. Estará esse mundo em risco? Dependerá de muitos fatores, mas a ameaça é real: (1) o estado de calamidade pública poderá inviabilizar a conclusão das principais competições; (2) sem futebol em Itália e Espanha é inviável retomarem-se as competições europeias; (3) o mercado de transferências do próximo verão será incapaz de gerar a liquidez que muitos clubes necessitam para equilibrar as suas contas; (4) existe um risco efetivo de suspensão de contratos televisivos, sendo que a Sky Itália já iniciou essa discussão e certamente muitas outras se seguirão; (5) muitos patrocinadores quererão rever os seus contratos ou não renovarão os existentes. Sem uma vacina, o futebol será sempre visto como uma ameaça à saúde pública e, como tal, o setor poderá vir a viver dias dramáticos, sendo que a conclusão da presente época desportiva é o menor dos problemas. Ainda é cedo para antever todas as consequências, mas este é o momento para se iniciar uma discussão séria sobre o atual modelo económico em que assenta a indústria, a começar pela imposição de tetos salariais, calendário de competições, períodos de transferências uniformes, imposição de limites ao número de jogadores emprestados e com contrato, limites ao número de jogadores estrangeiros e imposição de jogadores da formação nos planteis. É tempo de nova vida e sobretudo de reduzir as assimetrias que ameaçam a competitividade das ligas nacionais e a sobrevivência de muitos clubes históricos do Velho Continente. Talvez este vírus seja a cura para a doença que vem corroendo a essência do futebol.
4O Sporting e demais clubes portugueses não fugirão a esta discussão, sendo obrigatório a redução da massa salarial e a aposta na formação e no mercado nacional. Sem receitas duvido que a tesouraria aguente muito mais tempo. Sem banca, com as receitas televisivas ameaçadas a curto prazo, a sua antecipação será uma miragem. Sem mercado de verão, é tempo de implementação imediata de um plano de contingência, sendo que falar na manutenção do orçamento da próxima época é uma miragem. Serão tempos exigentes, de muita competência, e sobretudo capacidade de gestão de toda a estrutura profissional do clube. Discutir neste contexto a marcação de eleições é de uma enorme irresponsabilidade e de um oportunismo absolutamente lamentável. Mas não deixa de ser muito preocupante que no atual contexto a SAD do clube possa ter o seu presidente em regime de part-time por telefone, e acabe de perder um dos seus administradores executivos. Frederico Varandas pode ter-se voluntariado para o combate à covid-19, mas a forma como todo este processo foi gerido mostra, apenas e mais uma vez, um excesso de voluntarismo e falta de planeamento incompatíveis com a exigência a que um líder de uma empresa cotada estaria obrigado.