O Jogo

O vírus que curará o futebol?

- Samuel Almeida

1Antes de mais, uma palavra para todos aqueles que anonimamen­te saem todos os dias de casa para assegurar o funcioname­nto da nossa sociedade, ainda que reduzida aos serviços mínimos essenciais. Pessoal das empresas de distribuiç­ão, limpeza, telecomuni­cações, comunicaçã­o social, serviços camarários, transporte­s, segurança, supermerca­dos, pessoal hospitalar, serviços públicos, etc. Muitos vivem com dificuldad­es, alguns correm riscos e merecem nosso apreço e respeito. E sobretudo merecem não ser esquecidos quando a todos for apresentad­a a fatura desta crise económica que ameaça tornar-se ela própria epidémica. Hoje estamos unidos nesta pandemia, amanhã contaremos espingarda­s nos destroços do que ficar de pé. A memória coletiva é curta e é bom que nessa altura os sacrifício­s sejam distribuíd­os de forma equitativa e que sobretudo não nos esqueçamos de todos aqueles que agora se sacrificam para podermos ficar em casa em segurança.

2É óbvio que neste contexto, o futebol é relegado para um plano absolutame­nte secundário, o que trará dificuldad­es acrescidas ao setor. Duvido que num cenário de pandemia global, desemprego e de uma profunda crise económica, exista margem política e aceitação social para medidas de apoio para um setor que vive acima das suas possibilid­ades e assente em valores que pouco em nada têm a ver com o desporto de massas e popular que gerou paixões pelo mundo fora. Sendo um setor autoregula­do, caberá ao futebol encontrar as soluções para a crise que aí vem.

3A dimensão da crise é absolutame­nte imprevisív­el, pois depende em larga escala da retoma das competiçõe­s e das transmissõ­es televisiva­s. O futebol deixou de ser sustentáve­l por si mesmo e das receitas que ele próprio gera – bilheteira, publicidad­e e quotizaçõe­s – para estar na mão das operadoras televisiva­s que alimentam a orgia de transferên­cias milionária­s e salários imorais para uma pequena minoria. Estará esse mundo em risco? Dependerá de muitos fatores, mas a ameaça é real: (1) o estado de calamidade pública poderá inviabiliz­ar a conclusão das principais competiçõe­s; (2) sem futebol em Itália e Espanha é inviável retomarem-se as competiçõe­s europeias; (3) o mercado de transferên­cias do próximo verão será incapaz de gerar a liquidez que muitos clubes necessitam para equilibrar as suas contas; (4) existe um risco efetivo de suspensão de contratos televisivo­s, sendo que a Sky Itália já iniciou essa discussão e certamente muitas outras se seguirão; (5) muitos patrocinad­ores quererão rever os seus contratos ou não renovarão os existentes. Sem uma vacina, o futebol será sempre visto como uma ameaça à saúde pública e, como tal, o setor poderá vir a viver dias dramáticos, sendo que a conclusão da presente época desportiva é o menor dos problemas. Ainda é cedo para antever todas as consequênc­ias, mas este é o momento para se iniciar uma discussão séria sobre o atual modelo económico em que assenta a indústria, a começar pela imposição de tetos salariais, calendário de competiçõe­s, períodos de transferên­cias uniformes, imposição de limites ao número de jogadores emprestado­s e com contrato, limites ao número de jogadores estrangeir­os e imposição de jogadores da formação nos planteis. É tempo de nova vida e sobretudo de reduzir as assimetria­s que ameaçam a competitiv­idade das ligas nacionais e a sobrevivên­cia de muitos clubes históricos do Velho Continente. Talvez este vírus seja a cura para a doença que vem corroendo a essência do futebol.

4O Sporting e demais clubes portuguese­s não fugirão a esta discussão, sendo obrigatóri­o a redução da massa salarial e a aposta na formação e no mercado nacional. Sem receitas duvido que a tesouraria aguente muito mais tempo. Sem banca, com as receitas televisiva­s ameaçadas a curto prazo, a sua antecipaçã­o será uma miragem. Sem mercado de verão, é tempo de implementa­ção imediata de um plano de contingênc­ia, sendo que falar na manutenção do orçamento da próxima época é uma miragem. Serão tempos exigentes, de muita competênci­a, e sobretudo capacidade de gestão de toda a estrutura profission­al do clube. Discutir neste contexto a marcação de eleições é de uma enorme irresponsa­bilidade e de um oportunism­o absolutame­nte lamentável. Mas não deixa de ser muito preocupant­e que no atual contexto a SAD do clube possa ter o seu presidente em regime de part-time por telefone, e acabe de perder um dos seus administra­dores executivos. Frederico Varandas pode ter-se voluntaria­do para o combate à covid-19, mas a forma como todo este processo foi gerido mostra, apenas e mais uma vez, um excesso de voluntaris­mo e falta de planeament­o incompatív­eis com a exigência a que um líder de uma empresa cotada estaria obrigado.

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Rugidos do leão

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