Balde de água fria
De 2014 até há dois ou três anos, assistimos a várias vagas do Ice bucket challenge, um desafio que consistia em lançar um balde de água gelada (literal) sobre a cabeça de uma pessoa, frequentemente famosa, com o propósito de angariar fundos para o combate ao flagelo da Esclerose Lateral Amiotrófica. Entrei no desafio, com a cumplicidade dos que me amam, a água não estava assim tão fria(!), assim na quinta-feira passada, ao escutar o anúncio do senhor primeiro-ministro (PM) de que não haveria adeptos nos estádios até ao final da época, percebi verdadeiramente a sensação que o choque térmico provocava nos participantes. Embora apresentada como “uma questão resolvida e clara”, ela apresenta-se-nos como tudo menos isso. De facto, o que vem anunciado é que, independentemente do quadro legal que permita ao Governo atuar em desrespeito (legal) dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, a decisão de os desrespeitar (ilegalmente) é já garantida. Com efeito, parece o PM olvidar que a possibilidade que a Constituição lhe faculta de restringir, entre outros que poderíamos elencar, os direitos fundamentais à não discriminação, à liberdade, à livre deslocação no território nacional, ao trabalho e à livre iniciativa económica, apenas pode ser exercida num quadro constitucional e legal estrito… que tanto quanto é público, o senhor Presidente da República espera não voltar a ter de renovar. É certo que a imaginação legislativa em tempos de pandemia tem sido pródiga em soluções de legalidade desafiante, com diplomas que entram em vigor (produzindo os seus efeitos) em data anterior ao da sua publicação – um pouco como a adivinha do peixe (a pescada), que antes de o ser (pescada do mar) já o era (em nome). Além deste quadro (i)legal antecipado, surpreende a dissonância deste anúncio com os elogios da tutela e da DGS ao comportamento exemplar do futebol profissional durante toda a pandemia, cumprindo as determinações sanitárias, definindo regras rigorosas, implementando o primeiro plano de testagem regular e massiva em Portugal. E até ontem não ouvimos outros altos responsáveis falar do assunto. Era, aparentemente, um não tema! Surpreende a discriminação de que o futebol profissional é objeto. Ninguém concebe que um cinema, um teatro ou um restaurante (sala interior incluída) abram, mas que por exemplo a área de hospitalidade de um estádio permaneça fechada pois, ao invés dos espectadores no cinema, no teatro e no restaurante, que partilham um e o mesmo espaço e, por muito distanciados que se coloquem, respiram o mesmo ar fechado, os espectadores na zona de hospitalidade de um estádio estão repartidos por espaços individualizados e com largas portas para o exterior, para a bancada. Não é difícil entender que os camarotes e as bancadas representam espaços higiénicos, e seguros. As bancadas ao ar livre e com separação física evidente têm claramente as melhores condições. Não se percebe o tratamento discriminatório aos estádios. Cremos que, com a seriedade que tem caracterizado este Governo, voltaremos a ter, a partir de 3 de maio, espectadores nos estádios. Pelo menos, nós continuaremos a lutar por isso.